“- É só mais uma no meio da multidão; Deixa de ser besta!”. Era falando desse jeito que Afrânio tentava fazer com que Eneida ficasse em casa. Falou uma vez, duas. De nada adiantou. A namorada deu de ombros, lembrando ao rapaz que se fosse para obedecer alguém ela ainda tinha pai. O moço teve que engolir e ainda perder horas de dengo enquanto Eneida bordava a fantasia. Chegou o carnaval, ela foi desfilar e ele ficou amuado, bebendo no boteco com os companheiros de sempre. Nem terminada a quaresma e os dois já estavam de namorico, o desejo falando mais forte, esquecidos os desejos de mando do rapaz.
“- É só mais uma… Deixa de ser besta!” Repetiu o noivo no ano seguinte. A mãe de Eneida ficou calada evitando intrometer-se na vida da filha; o pai, simpatizante da folia, não ia engolir desaforo para com a menina debaixo das próprias barbas. Fez o marmanjo engolir o mando e desculpar-se pela “besta”. Eneida foi, novamente sem aliança, e mais uma vez reatou namoro antes da sexta-feira da paixão.
Foram meses de conversas dos amigos, de conselhos dos familiares. Todos sugerindo que ela seguisse a vida sem o rapaz. Eram diferentes; não daria certo. Eneida teimou porque amava Afrânio e acreditava poder dissuadir o homem já no primeiro carnaval, após o casamento. Lua de mel já distante, o que ela conseguiu foi tomar umas fortes bifas seguidas de ameaças maiores caso contasse para alguém. Antes de completar o primeiro ano do casamento Eneida escondeu a caixa de costura, cheia de miçangas e paetês. Junto o desenho do modelo da fantasia de sua ala, uma das mais animadas da escola. O marido tentando consolar, sem mostrar-se arrependido: “- É só mais uma no meio da multidão; Deixa de ser besta!”.
Ausência anunciada. Os amigos estranharam; a ala reclamou; até a escola assinalou a falta da moça, agora senhora casada. Foi difícil convencer os familiares de que tudo estava bem, que abdicara de desfilar pela agremiação que tanto amava. Teria algum problema? O casamento estava bem? Foi a própria Eneida a repetir, para satisfação vaidosa do marido, que estava cansada de ser só mais uma; tinha resolvido que deixaria de ser besta.
Ela tinha quinze anos quando desfilou pela primeira vez. Agora, dez anos e nove desfiles depois estava em casa, assistindo pela TV. O marido, esparramado pelo sofá, lembrava velhos babões toda vez que focalizam mulher bonita, seminua. Fungava e virava copos e mais copos enquanto passavam as alas, cheias de gente alegre e feliz.
O carnaval passou e a única atitude de Eneida foi alterar horários na academia, aumentando a carga de exercícios. Calada, resolveu que eliminaria todo e qualquer sinal de gordura, ganhando em alguns meses um corpão de estremecer qualquer homem e fazer rainha de bateria temer perder o posto. Nunca falou em samba, carnaval, escola, até que chegou o janeiro seguinte e, em uma tarde de domingo, anunciou tranquilamente para o marido: – Vou desfilar neste ano!
Antes que Afrânio proibisse ela informou que já estava tudo acertado com a escola. Ele engoliu o riso sarcástico e iniciou a frase costumeira: – É só mais uma… – Que vai desfilar em carro alegórico e de topless, interrompeu Eneida. O homem, lívido, repetiu todas as ameaças acrescidas de safanões, empurrões, afirmando que quebraria as pernas da esposa antes que ela saísse para o Sambódromo.
Chegou o carnaval e Afrânio estava acompanhado de dois guardas, bem longe do desfile. Eneida filmara a discussão e anexara ao processo fotos de hematomas da surra anterior. Uma vingança silenciosa, curtida na academia forjando um novo corpo para o desfile. Foi o próprio departamento jurídico da escola de samba que conseguira manter o valente à distância enquanto a moça, gostosa e enxuta, fazia a alegria da multidão ao dançar e sambar fantasiada de “coração solitário”; um minúsculo pedaço de cetim bordado, escondendo apenas aquilo que a TV não poderia mostrar. Afrânio, besta, assistia de longe a única moça sobre o carro, nua e bela, o grande destaque do dia.
Até mais.