O CÃOZINHO ABANDONADO

Gauguin (Tahitian Pastorals, 1892 – Detalhe)

Vista ali, maquiada, bem vestida, recostada no parapeito do Viaduto Jacareí, olhando embaixo para a Avenida 9 de Julho, não dava para imaginar seus motivos. Parecia uma senhora comum, uma transeunte distraída com a movimentada avenida vista ali do alto, com seu eterno vai e vem de carros, ônibus e motos.

Postada na mureta do lado oposto ao centro da cidade, o olhar permanecia fixo, sendo difícil saber exatamente qual ponto era observado. Ela acenava, com voz lacrimosa, olhar marejado, dirigindo-se para quem lhe desse atenção: “- Olha ali, está assim, amarrado o tempo todo. Tadinho! Sem comida, sem água. Nem se mexe!” Enquanto o interlocutor tentava entender o que estava acontecendo ela esclarecia, apontando para a paisagem próxima: “- Moro ali, naquele edifício da 9 de Julho. De lá vejo ele, pobrezinho, amarrado, sem água, sem comida”.

O ato de repetir a situação do amarrado sem água e comida visava despertar a piedade sobre… o que mesmo? E ela virava-se para o novo “amigo” mostrando-se por inteira. Os olhos bem pintados, um batom acentuando os lábios, a blusa, de manga comprida, tinha um decote generoso e, caso o gajo descesse o olhar veria uma cintura bem marcada, saia justa sobre pernas longas, salto alto.

Com voz triste, cheia de piedade, insistia na cantilena do pobre sem comida, sem água; um cachorro em uma coluna de madeira preso em um quintal ou pátio de estabelecimento da rua paralela à avenida. O quadro era real, o que não se podia era afirmar a autenticidade dele. Estar sobre o viaduto Jacareí e descer à rua verificar a situação demanda uma caminhada que carece de um sujeito apaixonado pelo ato de proteger todo e qualquer animal.

“- Moro ali, fico olhando pela janela. De lá tenho uma ótima visão e esse pobre animal está lá desde sexta-feira, ficou a noite toda e, veja bem, são quase cinco horas da tarde. Olha, não tem água, não há comida. Ele está tão fraco que pousam pombos bem próximo e ele não se mexe!” Era fácil constatar que o cão, já habituado ao espaço e às próprias condições nem se mexia com os pássaros por não poder alcançá-los. Uma observação mais demorada e percebia-se o movimento do animal, acomodado ao cativeiro. “- Eu não aguento vê-lo assim; fico muito triste!”, ela insistia.

A obviedade da questão seria a distinta procurar as autoridades competentes, fazer uma denúncia, salvar o bichinho!  “-Sou uma mulher sozinha, tenho receio, vai que sofra alguma retaliação! Se alguém me ajudasse…”

Nem sempre a conversa ia muito longe. Uns deixavam-na no vácuo, sem dar muita atenção. Um ou outro observava bem o local, indagava o nome da rua e prometia tomar uma atitude. Havia outros, mais raros, que observavam a maquiagem, o decote, a saia justa e, sondando possibilidades, partiam para o apartamento da protetora dos animais buscando ter a mesma visão que ela. O encontro terminava em sexo e o cãozinho permanecia preso.

Uma solidão brutal. Juliana não nascera para viver assim. Fora moça linda e os traços estavam ali, bem marcantes, denunciando sobre a figura majestosa de uma idosa a mulher bonita de outros tempos. Casou-se uma vez, não deu certo. Os ciúmes do marido eram tóxicos. O divórcio foi inevitável. O segundo casamento terminou quinze anos em depressiva viuvez. A solidão não foi tão percebida enquanto o tempo foi tomado pelo trabalho. Veio a aposentadoria; os amigos tinham seus familiares, suas vidas. A dela era estar só.

Não se adaptou aos grupos de terceira idade. Eram frequentes as sensações de desespero, de um aproveitar a última oportunidade, de viver o que restava. Pintavam situações de permissividade, com argumentos do tipo “o que há para se perder”? A dignidade, respondia. E foi se afastando, abandonando reuniões, evitando encontros. Ficou só. Perdeu a noção de quanto tempo se passou até que se percebeu absolutamente isolada, olhando a vizinhança pela janela privilegiada do apartamento do sétimo andar.

Há poucos transeuntes pela Avenida 9 de Julho, quase tomada exclusivamente por carros. Bem ali, ao lado do Viaduto Jacareí, o mais comum eram pessoas descendo ou subindo escadas rapidamente. Quando na Avenida iam para o ponto de ônibus, ou então, eram moradores, vizinhos. Os que subiam as escadas tinham a Câmara de Vereadores como destino, a Biblioteca Mário de Andrade, a Federação Espírita ou outro lugar qualquer.

Perdeu a conta dos assaltos vistos sobre o viaduto, os assaltantes fugindo calmos, com a tranquilidade de quem sabe que não será seguido. Deixavam carteiras, bolsas vazias nos últimos degraus da escada. Em finais de semana, após finais de futebol ou em dias de carnaval, apreciava diferentes composições de seres humanos fazendo sexo. Não enxergava direito pelo movimento, a iluminação precária. Acabou comprando um potente binóculo.

Conheceu pela Internet as salas virtuais. Por pouco tempo, já certa de não ter nascido para tal tipo de faz de conta. Trocou a sala por brinquedos eróticos que, para seu desespero, não incitaram sua imaginação, nem mesmo com o apoio de fotos, vídeos. Nascera para encontros reais, embora não tivesse coragem nem cara de pau para tomar iniciativas. Era necessário aguardar a sorte, o destino, o momento certo.

Lia muito. Leu e releu tudo o que havia acumulado ao longo de anos, comprou novos títulos, passou a frequentar as salas da Biblioteca Municipal. Um ou outro bar, jantar nas cantinas próximas, teatro, uma exposição. E ela sozinha, sem coragem de se aproximar, de tomar atitude e só muito raramente sendo abordada. Em sessões televisivas de autoajuda concluiu que precisava criar oportunidades, já que essas não apareciam.

Deve ter sido um gato, um rato, vai saber! Uma noite de sexta para sábado e ela teve o sono perturbado pelo latido distante, incessante do cachorro que, mal amanheceu o dia e ela conseguiu localizar o bichinho. Sol alto, visão boa, lá estava o cachorro no distante vizinho, amarrado e, como ela, solitário. Era um estacionamento, também lava rápido, sempre cheio de carros. Não era difícil concluir que o bichinho permanecia amarrado para não machucar nenhum freguês. Só a noite, estabelecimento fechado, o cachorro ficava solto. Quem sabia disso? O cãozinho. E ela.

Gostava de rir quando lembrava que a ideia veio do velho e bom conto de fadas. Se ela precisava de um Joãozinho para se alimentar, o jeito era atraí-lo tal qual a historinha, fisgando-o e arrumando um jeito de levá-lo para casa. Melhor, não aguardar a presa crescer, engordar. Era resolver a fome, saciar o desejo e seguir em frente, rumo a outro João sem Maria. Um plano canhestro, quase sempre fadado ao fracasso. A aventura, no entanto, era real e a adrenalina subia dando-lhe sensações há muito esquecidas.

Quando o interfone tocou anunciando a visita de um vizinho que não conhecia, ela desceu para atende-lo na portaria,  pois, não iria abrir sua casa para gente enxerida. No pequeno hall o homem falou poucas e boas, identificando-se como o dono do estabelecimento onde o cachorro permanecia preso durante o dia. Ele contabilizou dezoito denúncias e vários meses até descobrir de onde e como partiam tais acusações. Estava tendo um trabalhão para sair ileso de crime não cometido e exigia que ela parasse com aquilo. Enquanto ele falava ela o admirava.

Era um senhor bonito, forte, talvez um bom amante. Ela fingiu consertar um botão na blusa, abrindo essa com sutileza e olhar absolutamente cheio de intensões. “– Você, posso chamar o senhor de você, não é mesmo? Então, você precisa ver como eu vejo, da minha janela. Vai entender por que me vem a impressão de seu animalzinho ser mal tratado. Na verdade, eu gostaria de fazer algo por ele! Venha, vamos subir para que você veja. Como é mesmo seu nome?” João! Ela conteve o riso e, sem abrir totalmente a porta do elevador facilitou ao homem encostar-se em seu traseiro, arrebitado, para extinguir no outro qualquer dúvida sobre os motivos daquele convite.

São Paulo, novembro / 2021

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