Programa BH Todo Dia

Elias Santos e Valdo Resende

Muito feliz em ter participado e poder compartilhar a gravação do Programa BH Todo Dia, do Canal TV Brasil, já publicada no YouTube. Apresentado por Elias Santos e exibido ao vivo no dia 31 de março, o tema do programa foi “Auto estima, comunicação não violenta, Semana de Arte Moderna e humor”.
Destaque do programa a recente apresentação do Oscar, quando a atitude de Will Smith chamou a atenção do planeta para a Alopecia. O tema foi aprofundado por André Gianini, cirurgião plástico e especialista em restauração capilar.

Vários convidados participaram do programa: a terapeuta familiar Cinara Cordeiro, a atriz e apresentadora Kayete, a cantora Carô Rennó e eu, Valdo Resende, divulgando o Seminário Contingências Antropofágicas, apresentado no CCBB Belo Horizonte, com curadoria de Katia Canton e produção da Kavantan & Associados, Projetos e Eventos Culturais. Deixo abaixo os registros dos três blocos do programa:
No primeiro bloco, Elias Santos nos convida a opinar sobre a cidade, Belo Horizonte e eu, mineiro, não pude deixar Uberaba de fora dos meus comentários. No encerramento do bloco o especialista convidado fala sobre o tema motivador, a Alopecia.


No segundo bloco, comentamos a Alopecia; pessoalmente destaco a participação da Carô Rennó, que está nesta condição, nos colocando em contato direto com as questões vivenciadas e com experiências contundentes.

No terceiro bloco desenvolvemos o tema central e cada convidado falou do motivo específico em estar presente. No meu caso, a divulgação do Contingências Antropofágicas, 100 anos depois de 22.


Deixo registrado meu prazer em ter participado e conhecido grandes profissionais da minha terra, aprendido sobre o tema e, sendo “novato” nesse tipo de situação, quero elucidar dois aspectos que, posteriormente, percebi e sobre os quais peço desculpas:
O quadro que está atrás, na minha parede, com o retrato em aquarela do Palhaço Arrelia, não é de minha autoria, mas de L. Victor, artista santista. A segunda correção é que em Peirópolis, no município de Uberaba, temos sítios Paleontológicos e não arqueológicos (estes, minhas paixões piauienses).
Assistam e deixem suas opiniões.


Muito obrigado.

Contingências sobre 22

Veja a apresentação do Seminário Contingências Antropofágicas em vídeo, com Katia Canton, Sonia Kavantan e eu, Valdo Resende.

Contingências Antropofágicas em BH

Para celebrar o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o projeto “Contingências Antropofágicas / 100 anos depois de 22” traz três dias de seminário para o CCBB BH, neste início do mês de abril 💡

A proposta é questionar as influências da primeira etapa do Modernismo na arte hoje e joga luz sobre os significados de uma busca pela identidade brasileira por meio da arte. Como a questão da brasilidade toma corpo agora? O diferencial do projeto é que estarão no foco da discussão as contingências em três aspectos – Histórico, Estético e Humano.

👉 Haverá tradução em libras durante todas as atividades.

🎫 Para participar, é necessário retirar ingresso gratuito no site ou app da Eventim e/ou na nossa bilheteria física.

Atenção estudantes! Essa dica é pra vocês ✨
Participando de dois ou mais dias, você recebe um certificado digital.

Aguardamos todos os interessados.

Até lá!

Elis, 77!

Elis Regina. Foto: divulgação

Aniversário de Elis, mais viva do que nunca. Ela afirmava que teria a durabilidade do disco e, maravilha, seus discos estão aí: reproduzidos, mixados, masterizados… acompanhando a tecnologia e garantindo-nos ouvir e desfrutar do imenso talento da cantora. Para os aficionados, algumas novidades:

O disco Falso Brilhante ganha uma versão luxuosa, versão em Dolby Atmos, disponível a partir de hoje para os consumidores.

Próximo sábado, dia 19, na TV Cultura, 22h, a íntegra do show que Elis apresentou no Festival de Montreux, em 1979. Momentos imperdíveis da carreira da cantora. Destaque para os momentos em que ela divide solos com Hermeto Paschoal. O show terá comentários de João Marcelo Bôscoli, o filho de Elis que é produtor musical.

O Lyric vídeo especial com a música Como Nossos Pais está no Youtube e, entre outras novidades, um poster com a capa do disco Falso Brilhante, disponível na loja da Universal Music.

Outras novidades virão ao longo do ano e, aqui neste blog, teremos o prazer de divulgar e compartilhar. Elis merece. O Brasil merece.

Parabéns, Elis Regina!

Rio de Janeiro – Contingências Antropofágicas

Começa amanhã, no CCBB-RJ, a etapa do Seminário Contingências Antropofágicas, refletindo e comemorando o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Presencial e gratuito, veja abaixo a programação e os convidados participantes.

Dia 11 Denise Mattar e Priscila Figueiredo

Dia 12 Carolina Casarin e Frederico Coelho

Dia 13, Agnaldo Farias e Marcelo Campos

Todos estão convidados!

Versos de mulher para um samba com amor

Menina linda, desde criança tinham-na por musa. Da família, sendo neta primogênita; do colégio, entre as coleguinhas e da Escola de Samba Bambas do Amanhecer. Tina “Nasceu para ser amada, idolatrada, salve! Salve!” dizia o pai. Deste guardava o som de cada palavra, o sorriso sereno, a força ao levantá-la e jogá-la para o alto no “salve, salve! Minha Tina!”.

Entre os sambistas percorreu o caminho natural das crianças da Agremiação. Foi destaque da ala mirim, rainha da Turma do Amanhã e, adolescente já desfilava entre as musas da bateria onde um dia deveria ser rainha. Fazendo jus aos seus Tina tinha samba no pé, ginga e graça somadas à uma beleza que dispensava fantasias mirabolantes. Também não carecia de adjutórios, balangandãs, reforçava a avó com o familiar “Nasceu para ser amada, idolatrada, salve! Salve!” repetindo a frase paterna, o homem já falecido em desastrada batida policial.

Ao longo de décadas de história os membros da Agremiação Cultural Escola Bambas do Amanhecer não perderam sua característica primordial: um grupo que conservava o jongo, os sambas de roda, as tradições herdadas dos avós. Com grande destaque para o conjunto percussivo e de cordas que garantia notas máximas em todos os desfiles e campeonatos carnavalescos. E sambistas, muita gente com o samba no pé. Resistindo a imposições externas de patrocinadores, dando de ombros para as balelas dos imbecis narradores televisivos, os compositores não abriam mão de música bem elaborada, ritmo sofisticado e envolvente. Samba é arte para fazer gente feliz, o lema nunca esquecido.

Tina, um apelido carinhoso. O nome da menina viera da paixão paterna por Clementina de Jesus, cantora ancestral, força e voz do samba brasileiro, a Quelé da voz marcante e inesquecível. A mãe da garota mantinha características comuns de muitas mulheres: Tina era para os chamados afetuosos, carícias verbais. No entanto, toda a atenção era pouco para quando se ouvia da matriarca o tom imperativo, decidido: “Clementina!”. Crescendo, a menina passou a impedir o apelido, resguardado para lembranças muito pessoais. Se insistiam reiterava que Clementina fora nome escolhido pelo pai, portanto…

Do imenso universo que envolve o carnaval e as escolas de samba, a jovem amadureceu preferências pelos sambas de enredo. Guardava como relíquia discos e fitas antigas de coleção herdada do pai. Admirava Jamelão, o lendário cantor da Mangueira, tinha paixão pelas interpretações de Elsa Soares e evidenciava preferência por enredos com histórias incontestavelmente bem definidas como aqueles assinados por Silas de Oliveira ou Martinho da Vila!

Mas loucamente a Yayá do Cais Dourado
Trocou seu amor ardente
Por um moço requintado
E foi-se embora… ¹

Clementina cantava a Yayá do Cais Dourado, mas não queria ir embora. Deixar sua gente e, principalmente, Valmir, o jovem ritmista que desde cedo foi alvo das atenções e paixões de Clementina. Como não se apaixonar pelo rapaz que, além de manusear instrumentos de percussão com a maior facilidade, ainda criava lindas melodias? Não era bom nos versos, seria pedir demais aos deuses. Palavra era domínio da menina e a dupla passou a brincar, ela com a letra, ele colocando melodia e, ainda tímidos, resolveram esconder até dos familiares os primeiros sambas, inibidos pela qualidade dos excelentes compositores atuantes no cotidiano dos carnavais da Escola.

Dançando nos ensaios, desfilando na frente da bateria, Tina tornou-se jovem e bela, musa querida de todos. Entre um carnaval e outro cumpria compromissos visando a festa, mas o que gostava mesmo era de namorar e compor com o parceiro que a vida lhe deu. Continuavam escondendo o resultado do empenho em criar sambas, principalmente pela vontade de Valmir. “Essas letras são coisas de mulher. Eu ainda preciso aprender a compor versos, ou arranjar um letrista para os meus sambas”.

Quando adolescente Clementina achava atitude normal as imposições do namorado. Temia envergonhá-lo perante a Bambas do Amanhecer dominada por compositores homens. E insegura, achava  que as próprias histórias que contava em suas letras tinham muito dos romances açucarados que gostava de ler. Já crescida, a questão teve seu ápice quando, insistindo em mostrar as criações de ambos para a comunidade, Clementina citou as criações e os grandes sambas de Dona Ivone Lara. O namorado foi cruel para com a menina, ainda insegura: – Você não acha que pode comparar seus versos com “Os cinco bailes da história do Rio?”, lembrando o primeiro samba de enredo da grande compositora da Império Serrano.

Carnaval, doce ilusão
Dá-me um pouco de magia
De perfume e fantasia
E também de sedução…²

Magoada, Clementina evitou briga, mas deixou de fazer versos para as canções do namorado alegando ausência de inspiração. Limitou-se a fazer aulas de dança, fazendo crescer o objetivo de ir além de musa da bateria. Ela pretendia desfilar como porta-bandeira e, para isso se preparava, para ser a representante máxima conduzindo o pavilhão da Escola. Intuía desde há muito que o namorado jamais seria seu Mestre Sala, pois faltava para ele a elegância e a gentileza necessárias para a função.

A vida seguiria cotidiana caso não houvesse grande perda para toda a comunidade. Morreu Antônio Almeida, célebre compositor, letrista e melodista completo, autor por dezoito anos consecutivos dos sambas de enredo da Bambas do Amanhecer. Um acidente causado durante viagem onde o velho compositor comemorava um vice-campeonato no recente carnaval. Passado o choque, amenizada a tristeza, a diretoria da Agremiação decidiu por um concurso para escolher o compositor oficial, aquele que coordenaria seus pares nas criações dos futuros sambas da Escola. Só seriam aceitos participantes da comunidade e estava permitido também o trabalho de duplas, ou trios. Todos se entusiasmaram e Valmir ignorou a parceira de suas primeiras canções que, evitando dissabores, preferiu ficar longe dos preparativos para a competição. A mágoa ficou exposta quando Tina ignorou os trabalhos inscritos pelo namorado.

Da grande final Clementina não pode, nem quis ficar distante. Estava feliz. Valmir fora anunciado entre os finalistas via composição em parceria com o irmão mais velho, Alfredo, um estranho no ninho. A moça jamais soubera ter um cunhado compositor. Presa no trabalho por uma reunião esperada que se alongou, a moça chegou ao evento bem no momento em que a quadra fervia. Valmir subiu ao palco para se apresentar como o grande vencedor daquele concurso. Entre alegre e surpresa, Clementina reconheceu imediatamente antigos versos que escrevera e não conseguiu segurar o desapontamento ante a certeza de não ter o próprio nome entre os criadores da composição.

O que seria uma briga imensa foi abafada pela diretoria, alguns membros da Velha Guarda e pela própria mãe da moça. Quando Clementina denunciou ser também autora, os demais concorrentes exigiram a desclassificação da dupla vencedora. Ficou no disse-me-disse. A mãe de Tina, agora interessada no Presidente da Agremiação ignorou a propriedade intelectual da filha: “Clementina, você não vai nos prejudicar por uma vaidade tola!” A moça, acostumada, obedeceu. O namoro terminou ali. Tudo se aquietou.

O desfile das escolas de samba daquele ano teve como grande marco o primeiro campeonato da Bambas do Amanhecer. Entre a alegria da vitória e a mágoa pela exclusão do próprio nome entre os criadores, Tina presenciou comemorações que atravessaram março, abril. Os compositores vencedores garantiram o direito de compor para os próximos carnavais. Quem iria contrariar? Prêmio merecido, sendo citados por revistas e jornais especializadas que reconheciam inegável poesia dos versos do samba enredo.

No ano seguinte os sambistas começaram a estranhar a demora em que se decidisse o novo enredo. Tradicionalmente, era o samba que determinava o enredo e não o contrário. Com o atraso da dupla, sempre afirmando que buscavam versos melhores que os anteriores, foi exigido que indicassem o tema. Já era o mês de maio e a infraestrutura material já estava comprometida. Tecidos, confecção de adereços e fantasias, projetos de alegorias… já estava na hora das aquisições, encomendas. O ainda apaixonado Valmir, sonhando com uma reviravolta do destino, informou: “Vamos homenagear Clementina de Jesus!”.

Novembro mais do que tenso, pesado. Pressionando a dupla de compositores foi marcada uma noite para apresentação do enredo da Bambas do Amanhecer. A decisão da diretoria foi irrevogável; não esperariam mais um único dia. O que se viu na hora da apresentação foi constrangedor. Uma dupla alcoolizada escorada em boa melodia, sob o som esfuziante da percussão, cantou versos medíocres, indignos da campeã do carnaval. Do constrangimento à revolta foram poucos minutos. Não tardou a que um rival do Presidente em exercício subisse ao palco expondo o dilema e a crise instaurada. A Bambas do Amanhecer não tinha um samba enredo. E o motivo, todos sabiam. A letra do samba anterior fora criado por Tina.

Quando soube do ocorrido, contam, que ela apenas sussurrou: “Mulher não compõe? Então vamos ver”. E após ouvir a melodia, por apenas duas vezes, pegou papel e caneta, pensou no pai e no afeto deste por Clementina de Jesus, na Mangueira, na trajetória da cantora, mãe querida de todos os sambista. Em poucos minutos redigiu os versos que, naquela mesma noite foram apresentados e aplaudidos por todos os presentes na quadra. Tina foi declarada compositora oficial da Agremiação Cultural Escola Bambas do Amanhecer. A moça não titubeou em corrigir quando foi anunciada: Clementina! Meu nome é Clementina Maria dos Santos.

Fevereiro. Carnaval. Entrou na avenida como destaque do carro de som, com faixa não de rainha, a compositora Clementina Maria dos Santos, entoando com alegria o seu samba enredo: “Versos de mulher para Quelé, um samba com amor!”. Exigiu que Valmir desfilasse bem atrás, escondido no meio de vários instrumentistas. E na semana seguinte, durante o desfile das campeãs, passou pelo sambódromo carregando sozinha o troféu de melhor samba de enredo do ano.

Valdo Resende / Fevereiro de 2022

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Notas musicais:

1 – Yá-ya do cais dourado é composição de Martinho da Vila para a Unidos de Vila Isabel, em 1969.

2 – Os cinco bailes da história do Rio, enredo da Império Serrano de 1965, é composição de Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara e Bacalhau.

Páginas viradas

Para Fátima Borges, a Fafa.

Mesmo planejada, a mudança não deixou de ser brusca. Tinha sido uma vida atribulada, feita de oito, dez horas de trabalho diário mais ações paralelas à atividade profissional. Jantares, teatros, noites de festas, domingos no museu. A vida exigia presença, participação e ela gostava muito de tudo isso. Aos poucos foi se cansando mais, querendo uma tranquilidade de há muito desejada. Ignorar relógio, esquecer o calendário para poder olhar para a vida, manhãs de sol, tardes preguiçosas, noites de caminhadas tranquilas e descompromissadas. Estabeleceu data para aposentadoria e prometeu a si mesma que deixaria qualquer atividade por tempo indeterminado. Queria experimentar o não fazer nada. E assim foi.

Perdeu-se a conta de quanto tempo ela permanecera ali, sentada no sofá da sala, a televisão ligada sem que prestasse atenção à novela, ao noticiário. Mantinha o olhar fixo, o semblante sem qualquer reação ante a visão de um prato de requintada culinária, um desastre aéreo, um escândalo político. Resolvida a cumprir a recente promessa não quis ler, escrever, bordar, pintar, nada. “Já trabalhei muito! Agora não faço nada”. Nem mesmo a própria comida, o cuidar da casa, das roupas, das unhas, pele e cabelo.

Com o tempo Teresa percebeu que a televisão era gatilho para o alheamento da patroa. A ajudante de décadas preparava o café da manhã antes de acordá-la. Após o asseio matinal, Maria sentava-se diante de uma fruta, pão, queijo. Café, não. Nem chá, nem leite. Suco. “Quero um tempo para me lembrar quem fui antes de trabalhar ininterruptamente por esses 30 anos”. Pedido de cancelamento do jornal atendido, deixou que vencesse a assinatura de revistas, periódicos. Gostou até de evitar convites para seja lá qual for o evento e foi, aos poucos, também cortando encontros corriqueiros, exceto de grandes amigas e parentes próximos, deixando de receber visitas protocolares de conhecidos, parentes distantes.

Berenice, a sobrinha mais velha, era a única a visitá-la regularmente. “A saúde vai bem? Precisa de alguma coisa?” Teresa não gostava das perguntas feitas à patroa que preferia responder com monossílabos indiferentes à intensa curiosidade da sobrinha. Em dado momento a moça ofereceu um novo celular e, ignorando o desinteresse e atenção da tia, insistiu em atualizá-la quanto à maneira de usar redes sociais, identificar chamadas, medir batimentos cardíacos e as demais maravilhas do recente modelo do aparelho… E orientou a tia até a fazer uma playlist, deixando como exemplo canções da primeira fase da carreira de Chico Buarque. “Eu sei que a senhora gosta. Vou deixar aqui, tocando. Se quiser desligar é só apertar aqui. Não se esqueça de carregar a bateria”. A tia gostava realmente do compositor, ouvindo cada uma das músicas familiares desde a adolescência e sua juventude.

A Rita levou meu sorriso, no sorriso dela meu assunto

Levou junto com ela o que é de direito…

A sobrinha tinha ido embora deixando o aparelho ligado e as canções preencheram aquelas primeiras horas matutinas fazendo histórias virem à tona. Maria recordou um violão quebrado quando soube que um namorado desnaturado, filho da mãe, havia feito serenata para uma zinha qualquer. Sabendo do fato ela foi ao apartamento do sujeito, entrou silenciosa, decidida, e ante um olhar atônito do rapaz, bateu com o violão sobre as teclas de um piano… “Causou perdas e danos!”. A lembrança era boa e Maria sorriu. Algo tão inusitado que realçou o brilho do olhar e ela notou a claridade do dia, o sol batendo forte no terraço. Teresa percebeu mudanças quando trouxe um suco que antecedia o almoço. “Hoje não quero almoçar. O Chico me basta”, sentenciou Maria já nos primeiros acordes de mais uma canção.

Toda gente homenageia, Januária na janela

Até o mar faz maré cheia, pra chegar mais perto dela…

Ela resolveu bisbilhotar a tal playlist e notou que o autor da coisa havia priorizado entre as canções de Chico Buarque aquelas que remetiam a mulheres específicas: Rita, Januária, Bárbara, Ana, Carolina, Cristina, Beatriz, Maria, Rosa, Angélica… Aumentou o volume para espanto da empregada que retornou, rápida e assustada, temendo ter acontecido algo ruim. Maria aproveitou a presença da outra: “Temos vodca e gelo? Coloque nesse suco de laranja, por favor!” Vodca às onze horas! O olhar da mulher ao relógio dispensou a pergunta. Maria insistiu: “Capricha, Teresinha! Por favor! Vou procurar “Teresinha” para te homenagear”.

Vieram com a bebida canções e performances até então desconhecidas de Teresa que, em dado momento, sucumbiu aos convites e passou a bebericar com a patroa. De início tímida, aos poucos foi entrando na sintonia da outra e nem se surpreendeu quando Maria foi ao quarto e voltou vestida apenas com meia arrastão, cinta liga, uma minúscula calcinha vermelha. Teresa recusou mudar de roupa. A outra desligou o celular e ligou o aparelho de som, mais potente, enchendo o início da tarde com o som de CDs, a coleção do compositor que há muito estava abandonada.

Ai se mamãe me pega agora, de anágua e combinação

Será que ela me leva embora, ou não…

Improvisando coreografias, escolhendo canções nos diferentes discos, quando bebericaram a quarta ou sexta dose quebraram de vez a barreira já tênue entre patroa e empregada, Maria convencendo Teresa a dançar como se fosse “Bárbara”, dançando nuas pela sala, a possibilidade de ir além quebrada com sonoras gargalhadas após definição de território: “Olha aqui, Maria, ‘desesperada e nua’, sim, sabendo que ‘serei sua’, não. Eu quero é o Antenor! Gosto muito!” Após muitas risadas, Maria retomou o telefone anunciando uma ideia: “Será que o Juvenal ainda me quer?”.

Juvenal, ex-colega de trabalho, também recém aposentado, vivendo tranquilo com a esposa e tomando conta de netinhos todas as tardes titubeou ao convite de Maria, estranhando a hora, a quarta-feira, a voz esgazeada pelo álcool da amiga por quem morria de tesão e de quem não tinha notícias há meses. “Venha agora, Juvenal. Você ainda me quer, eu sei. Vem agora! Você não tem uma boa desculpa para sair à noite. Então venha ao banco, diz que irá acompanhar um amigo durante exame de vistas, diz alguma coisa, Juvenal! Ou mudo de ideia! Página virada, Juvenal!”.

Encantada e feliz pela repentina e intensa saída de Maria do marasmo de meses, Teresa arrumou rapidamente alguns petiscos, reformou o balde de gelo, verificou a quantidade de bebida no armário e prometeu, sob juras aos deuses e santos, permanecer fechada no quarto de hóspedes até ser chamada de volta. Últimos momentos antes da chegada do amante, Maria despiu-se protegendo o corpo apenas com um roupão leve, esvoaçante e transparente, sentenciando ao término de outra velha canção, da moça que desatinou: “Não vou desatinar, Teresa. Chega! Não sou dessas!”, já colocando outra música, olhando no relógio. “Juvenal que não se atrase!”. As duas ainda voltaram a bebericar e dançar.

Chego a mudar de calçada

Quando aparece uma flor

E dou risada do grande amor…

Chico Buarque e Gal Costa, cúmplices involuntários de Maria, pronunciaram junto com a campainha o último verso de O Samba do Grande Amor:

Mentira!

Maria despachou Teresa para o quarto e, antes de atender a porta, avaliou-se no espelho, abrindo um pouco mais o decote, ajeitando o cabelo. Calma, colocou uma premeditada canção do onipresente Chico também na voz de Gal Costa. Juvenal seria burro demais se não partisse para o objetivo da visita ao ser recebido pela folhetinesca mulher “que só diz sim” sem manhã seguinte, sem qualquer compromisso. Calmo e competente, a escolha de Maria não desapontou, nem diminuiu um mínimo sequer da magia daquela tarde.

O meu amor tem um jeito manso que é só seu

Que me deixa maluca quando me roça a nuca…

Teresa só pode sair do quarto quando o sol estava se pondo, atendendo ao chamado da patroa, novamente sozinha na sala. “Estou faminta!”. E sem dizer mais nada voltou ao silêncio costumeiro, mas com um inconfundível brilho nos olhos. Pura satisfação. Teresa, ainda sob efeito da vodca, não economizou comentários. Contou não esperar jamais ver a patroa em trajes íntimos, quase bêbada, bailarina performática. Tão quietinha! Tão ensimesmada! Quem podia imaginar que, rápida e resolvida, arranjaria um encontro em menos de uma hora? Conclui em dado momento que a razão deveria ser esse Chico Buarque, milagreiro! Quem diria! Que compositor porreta! Maria abandonou o silêncio perante o prato cheio: “Chico é ótimo, Teresa; mas eu sou apenas quietinha. Sabe, eu sou safada; muito safada!”. Rindo muito, cumplices, mergulharam nas delícias de uma boa massa, Chico cantarolando na noite alegre e quente de mais um verão.

Pintar, vestir
Virar uma aguardente
Para a próxima função…

Valdo Resende / 2022

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Notas musicais:

Páginas viradas, o título, é expressão usada por Chico Buarque em Folhetim (Chico Buarque, para a Ópera do Malandro – 1979) gravada por Nara Leão, fez enorme sucesso em 1978 na voz de Gal Gosta.

A Rita (1966) – Chico Buarque – é o disco cuja capa virou meme, o Chico sério e sorrindo. Neste disco há outro nome de mulher, Cristina, irmã de Chico homenageada em “Será que Cristina volta”.

Januária (1968) – Chico Buarque – Do terceiro LP do compositor. Deste disco consta “Ela desatinou”, e “Carolina” também mencionadas acima.

Ai, se eles me pegam agora (1979) – Chico Buarque –  a data é de quando foi lançado o álbum com as músicas da peça A ópera do malandro. A canção citada é interpretada pelo grupo As Frenéticas.

O Samba do Grande Amor (1984) – Chico Buarque – O vídeo com Chico e Gal cantando é imperdível. Gal “revira os olhinhos” em momento de puro charme.

O meu amor (1979) – Chico Buarque – Do mesmo disco da Ópera do Malandro, com interpretação de Marieta Severo e Elba Ramalho. A gravação, um ano antes, de Maria Bethânia em dueto com Alcione foi um grande sucesso. Teresinha, a canção também citada acima, foi gravada por Bethânia e, no disco de 1979 tem registro de Zizi Possi.

Na Carreira (1983) – Chico Buarque e Edu Lobo são os autores dessa música para o final de O Grande Circo Místico, criado para o Balé Teatro Guaíra. Na trilha há “Beatriz” e “A história de Lilly Braun”, outras mulheres citadas pelo compositor.

Outras mulheres citadas acima e no cancioneiro de Chico:

Bárbara e Ana (Ana de Amsterdam) são da trilha da peça Calabar, o Elogio da Traição, proibida pela ditadura em 1973. Chico Buarque e Caetano Veloso cantam essas canções no show gravado ao vivo em Salvador, lançado em 1972. 

Maria, está em Olha Maria, do LP Construção (1971) e está também em Anos Dourados, esta em parceria com Tom Jobim, de 1987.

A Rosa, é aquela doida pela Portela, vestida de verde e rosa… há uma gravação genial de Chico em dueto com Djavan.

Angélica, na real, é Zuzu Angel, mãe de Stuart Angel Jones e da jornalista Zuzu Angel. Stuart foi torturado e morto pela ditadura e Zuzu, buscando pelo filho, morreu em duvidoso acidente, em 1976. Chico Buarque, em parceria com Miltinho, do MPB4 gravou Angélica em 1982.