Decidi escrever o romance “dois meninos – limbo” no início de 1999. Um imenso embate em como relatar, denunciar, divulgar enfim o que está cotidianamente ao nosso lado, às nossas vistas, nos locais onde vivemos. A AIDS havia chegado no Brasil em 1982 e em 1999 já se contabilizava 155.590 casos. Grande tragédia para quem foi jovem nos anos de 1980, quando o tesão passou a ser risco de vida, como disse Cazuza em versos.
Sentença de morte para todos os infectados, a doença também impunha forte segregação social. Não bastando estar infectados, os indivíduos sofriam pelo preconceito, pelo descaso, pela desinformação de quem temia contágio pelo mero toque de mãos. Os doentes perdiam empregos, amores, família e, para uma sobrevida minimamente digna, assumiam um anonimato.
O livro foi lançado em 2014. Não, não levei quinze anos para escrevê-lo. Quatro ou cinco, com certeza, mais revisões, leituras feitas por amigos e uma reescrita exigida por entrar em vigor o novo acordo ortográfico, em 2009. Pior mesmo foi a peregrinação por editoras. Nenhuma interessada em lançar um novo autor com um romance que tinha a AIDS norteando a prosa. Lançamento feito, o anonimato das personagens recebeu a companhia de muitos outros, entre os que adquiriram o livro, que me brindaram com o silêncio. Bem provável, caso já fosse moda “cancelar” naquele ano, eu teria sido cancelado por um monte de gente.
O mundo caminhou e a diversidade assumiu outras cores, dando visibilidade de tal forma que até mudanças na linguagem passaram a ser pauta e objetivo de luta. Inegavelmente há avanços e conquistas, mas que ninguém se engane, os anônimos continuam por aí, excluídos e sem uma vida plena em dignidade. Daí o tema da 27ª Parada do Orgulho LGBT+ de SP: QUEREMOS POR INTEIRO, NÃO PELA METADE. São pouco mais de dois minutos para você, leitor, tomar consciência da questão:
Quem quiser se aprofundar um pouco mais pode ler o Manifesto dos organizadores da Parada do próximo dia 11, clicando neste link.
Nos próximos posts retomarei textos escritos sobre o livro “Dois meninos – limbo”. A ideia é lembrar que questões fundamentais ali relatadas, infelizmente, continuam atuais. Dados de 2019 (atualização dificultada pela pandemia da COVID), a AIDS já causou 32 milhões de mortes no planeta. A absoluta maioria: anônimos.
Poderia escrever sobre o filme Ladrões de Bicicleta, do premiado diretor Vittorio De Sica. Mesmo porque não sei se eram ciclistas ou ladrões do veículo os dois garotos presos hoje, pela manhã, aqui bem próximo de casa, em Santos. O aparato policial era escandalosamente desproporcional. Cinco viaturas para dois garotos. Cinco! No cruzamento, fazendo o entorno do canal 4 estavam os veículos, os policiais e sentados no passeio, como se tomando sol, dois adolescentes.
Ladrões de bicicleta (1948) – Divulgação
Eram dois garotos desses muitos que pedalam pela cidade. De bermuda, camiseta, pele e cabelos queimados de sol. Sem os dez guardas no entorno e seriam dois adolescentes passando o tempo sob o sol de outono. Observando mais atentamente via-se que estavam um tanto sérios, aparentando calma, mas com os braços cruzados de forma tensa, as pernas retesadas. Sabe-se lá que destino teriam enquanto os policiais, não sei o motivo, esperavam um não sei o quê.
Teriam roubado alguém ou alguma bicicleta? No filme italiano de 1948 um pobre desempregado recupera sua bicicleta que estava “pendurada” ao conseguir um emprego. Logo em seguida é roubado, privado do veículo que seria essencial para o trabalho. Esse é o filme de De Sica. Os ladrões daqui são bem distintos. Aqui em Santos e na vizinha São Vicente há um modus operandi de garotos ladrões que usam bicicletas para aproximação e fuga rápidas. Atacam turistas ou pessoas mais velhas, distraídas e sós. Um vem e faz uma curva em volta do pedestre e o segundo completa o ato, roubando carteira, telefone, bolsa ou qualquer outro objeto que possa ter valor.
Sem saber se roubaram uma bicicleta ou se eram ladrões de outra coisa segui meu rumo, sem antes ouvir mesmo sem querer algumas falas do tribunal popular já instalado no lado oposto. “Daqui a pouco estarão soltos, guardem a cara! Logo voltarão por aqui” disse um senhor. Ao que uma mulher ponderou: “Poderiam estar trabalhando, não é? A gente, nessa idade já trabalhava. Hoje, não pode trabalhar”. E eu segui, sem atentar para outros bochichos ou comentários. Fiquei pensando nos meninos, ladrões, que poderiam ser aqueles outros, famosos da literatura de Jorge Amado, os Capitães da Areia.
Capitães da Areia – Imagem divulgação do filme de 2009
Os meninos relatados por Amado perambulam pelas praias da Bahia, são os donos da cidade de São Salvador. O escritor nos faz ver o quão há de humano em cada personagem fazendo emergir o modo de ser, a história, a índole de cada um. Com os Capitães da Areia aprendi a olhar meninos que, por diferentes circunstâncias estão nas ruas. Não são meninos de rua. Estão lá por algum problema social que, sendo social, é nosso. Confesso ter tido mais tranquilidade no passado, quando minha juventude facilitava o distanciamento dessas personagens que, percebo com clareza, não me olham, mas me examinam. Mantenho-me atento e esta é a única defesa possível.
Sendo alvo dessas personagens, ou seja, velhote andando sozinho pela rua ou pela calçada da praia, não me sinto confortável, embora não me passe pela cabeça ficar longe do mar. Deixando cartões e carteira em casa estou certo de, sendo roubado, não perder lá grande coisa; o que não me impedirá de levar uns sopapos que, imagino, venham acompanhados de palavrões e desaforos: “Tem vergonha não, tio! Tá mais pobre que a gente!”. Outro dia no ponto de ônibus um me pediu 10 reais. Eu não tinha. Deixou por 5, eu também não tinha. Pelo menos 2, disse ele, exasperado! E eu, já meio sem jeito, disse estar apenas com a Identidade para usar como passagem. E ele se foi, irritado, me desaforando: “Se eu tivesse juro que te daria”. Eu ri, pensando que receberia sem pestanejar.
Há uma série de moradores nos jardins da praia e já conheço muitos deles. São gente boa. Vivem de bicos, tipo levar mesas e cadeiras de praia para locais próximos. Trabalho pesado. A maioria deles tem cachorro, o Caramelo é famoso, e já conheço uma senhora, boa alma, que os visita, trás remédios, leva para socorro médico. Estão invariavelmente limpos, pois água é o que não falta. Falta comida e, parece, sobra bebida. Volta e meia estão discutindo, uns afanando coisas dos outros. “Cadê meu celular?”, “Você bebeu tudo enquanto eu estava dormindo”. No mais, o máximo que podem nos fazer é pedir cigarro, um trocado, ou comida. Parece haver um acordo tácito: eles não nos incomodam e assim convivemos. Tenho medo mesmo é dos que andam em bicicletas.
Santos possui uma extensa rede de ciclovias, todavia os ciclistas deixam muito a desejar na cidade. Andam sobre os passeios, na contramão, não respeitam semáforos e muito menos pedestres. A velocidade é daquela do velho ditado – tão indo tirar alguém da forca. Na imensa orla que mal permite aos desavisados distinguir Santos de São Vicente há ciclovia em mão dupla. No entanto, mesmo com avisos de proibição, os ciclistas invadem os jardins e a calçada rente à praia. Nunca sabemos se são só cidadãos desobedientes ou se são os já temidos ladrões, notícias frequentes nos jornais.
Ainda em fase de transição de governos, ainda sob efeitos da pandemia e todas as mazelas econômicas penso ser óbvio que o roubo vem de algum problema concreto. Não pretendendo um tratado de sociologia me resta permanecer atento e, quando possível, fazer e exigir dos responsáveis algo pela educação e formação de crianças e adolescentes. Sem escola, os pais desempregados ou com salários irrisórios, há aqueles que não pedirão, roubarão. Simples assim.
Uma cena grotesca e absurda: um rapaz enfrenta a multidão que vocifera e expõe sentimentos torpes, baixos, indignos de seres humanos. Vini Jr está em uma arena onde deveria ser no mínimo respeitado por quem não o consegue vencer. Este é o triste motivo do crime cometido pela torcida adversária: o atleta do Real Madri, junto a seus pares, subjuga o Real Valência. Impotentes diante da superioridade de quem lhes impõe uma derrota, para a torcida covarde sobra a estupidez e a ofensa criminosa.
Um resultado imediato revela outro absurdo. Vini Jr. é expulso. Os criminosos não são autuados, nem sofrem sansão flagrante. A vítima sai de cena sem que seus colegas tomem seu partido. Sim, um fato que evidencia a individualidade em um esporte que deveria ser coletivo. O ataque da torcida covarde é contra um atleta. Os europeus do Real Madri não são ofendidos e nem saem do campo em apoio ao colega ofendido. O dirigente do Real Madri demorou para se manifestar e o dirigente da “La Liga” criticou o jogador. Infeliz atleta que tem por sina a excelente qualidade do seu futebol!
Certamente não há nada de novo a ser dito sobre o que acontece com o jogador de futebol Vini Jr. na Espanha. Por isso mesmo devemos repercutir, insistir, denunciar à exaustão. Por isso devemos expor patrocinadores dessa cena grotesca. Os patrocinadores dos dois times e da Liga. E devemos exigir das autoridades espanholas ações enérgicas e eficazes visando punir os criminosos. E que ninguém venha dizer que é impossível identificar cada criminoso, posto que pelo mundo afora sobram exemplos de que é possível buscar cada manifestante no meio de uma torcida, de uma multidão.
Torcedores inflamados costumam perder o controle em uma partida importante. Se desesperam, gritam, choram. Conversam com a televisão amaldiçoando o juiz, o treinador e, dentro de um estádio de futebol, essas sensações se multiplicam e explodem no ato coletivo, na cumplicidade entre iguais. Nesses momentos conhecemos o verdadeiro caráter de muitos em meio a uma torcida. Em algumas ocasiões extrapolam o limite entre o civilizado e o irracional expondo, sobremaneira, uma imensa covardia. Será que cada criminoso, entre os muitos naquele estádio, teria a coragem de agir da mesma forma quando só? O corajoso que esbraveja com apoio de iguais usaria as mesmas ofensas em um cara a cara com o ofendido? Covardes.
Vini Jr. é um atleta. Um ser humano! Foi vergonhosamente ofendido por espanhóis, dentro de um estádio espanhol, em território espanhol. Que todas as medidas judiciais cabíveis sejam tomadas e, enquanto isso não ocorrer, só podemos lamentar e denominá-los cúmplices. Os dois times, La Liga, as autoridades espanholas. Se a Espanha apresenta neste momento os melhor futebol do mundo, que este não tenha por base o crime e a barbárie.
Por um bom período moramos lado a lado. A proximidade de relações entre nossas famílias facilitou a ausência de muros e são lembranças muito fortes quando, pela manhã, vinham mães com crianças doentias, algumas bem choronas. Sem muita conversa, D. Palmira caminhava pelo quintal colhendo pequenas porções de ervas; arruda era a mais comum. Sem tirar a criança do colo da mãe, D. Palmira fazia o sinal da cruz em si e na doentinha. Iniciava o benzimento falando bem baixinho; a mais frequente ação era para tirar o quebranto.
“Tu tens quebranto, dois te puseram, três hão de tirar… em nome das três pessoas da Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.
Outros tempos quando para qualquer mal o primeiro socorro era o benzimento. De crianças perebentas tirava-se o “cobreiro brabo” e cabia ao paciente responder três vezes à pergunta da benzedeira: “O que é que eu tiro?” E ouvia-se a voz débil, “cobreiro brabo!”. D. Palmira para uns, Madrinha Bia para outros, era mulher risonha, adorava um bom prato e estava sempre disposta ao trabalho, ajudando a filha a cuidar de nove crianças, seus netos. Creio que a maioria das crianças do bairro e outro tanto de adultos receberam as bençãos daquela mulher, viúva simples e pobre, que jamais cobrou um tostão pelo trabalho.
Minhas recordações de Tia Palmira são distintas. Irmã caçula de minha avó, tinha um rosto alvo, sempre muito bonita e sorridente. Recordo a tia lutando pela saúde do marido, Tio Alcides. Ela não mediu esforços buscando a cura para a doença que, penso eu, devia ser desses males difíceis. Foi a primeira vez que ouvi falar em Zé Arigó, o famoso médium que recebia o espírito do Dr. Fritz. A Tia Palmira levou o marido até Congonhas do Campo, em Minas Gerais, para que este fosse operado espiritualmente. O médium foi honesto e afirmou que a ação seria paliativa, pois não haveria cura. Todavia, maior poder tem Deus e Tia Palmira continuou. Em Uberaba procurou Chico Xavier e lá também frequentava o Sr. Eduardo, ou Eduardinho, que trabalhava com ervas, beberagens, garrafadas.
À morte inevitável do marido ocorreu longo período de luto. Dez anos vestindo-se com roupas pretas. Cabe ressaltar que esse fato ocorreu bem antes do vestido “pretinho básico” das elegantes de ocasião. Tia Palmira não se preocupava com moda, mas com o respeito que achava que devia ao falecido. Passado o luto, voltou a sorrir, a usar joias e a se maquiar. Sendo bonita, logo reencontrou antigo afeto com quem se casou e foi feliz. A última vez que nos encontramos foi no velório de minha avó e Tia Palmira, com boa dose de humor macabro, afirmava entre risos contidos ser a próxima. “Estou tão ruim! Logo, logo vou eu!”.
Não tendo hábito de assistir programas de culinária vi poucas vezes a simpática Palmirinha, mas quando a vi estava sempre cozinhando com bom humor e afeto. Tive tempo de perceber a relação da cozinheira para com seu trabalho. Um aprendizado necessário: cozinhar com alegria e afeto, uma tarefa primordial para a relação que se estabelece entre as pessoas. Cozinhar para si e para o outro! Algo a ser estimulado posto que hoje em dia é comum encontrar pessoas que rejeitam o fazer uma refeição como se essa não fosse fundamental para qualquer ser humano.
A história de Palmirinha, descobri nos obituários, é bastante densa, com uma infância e juventude sofridas. Embora todo o passado conturbado e difícil, tornou-se a mulher doce, a apresentadora simpática e a cozinheira amorosa. Deixou-nos a lição fundamental do bom humor e da alegria no ato de transformar ingredientes em refeições deliciosas. Ensinou-nos, como alguns de seus pares ensinam, que cozinhar é uma arte, um terreno de criação e transformação.
D. Palmira, Tia Palmira, D. Palmirinha! Três mulheres tão distintas e, percebo agora, tão próximas no sorriso, nas relações com a vida, com o trabalho, com o outro. São mulheres que deixaram lembranças doces. Para elas destinamos vibrações carinhosas, desejando-lhes em dobro o que por nós aqui fizeram.
Há dias em que, inevitável questionar se é ou não futilidade, temos que ir às compras. Não dá para esperar a melhor oferta, a liquidação ou qualquer outra artimanha do comércio. A necessidade fala mais alto e lá fomos nós caminhando atentos pelas ruas da cidade e, simultaneamente, despreocupados. O céu nublado nos levou a portar um guarda-chuva. Sem medo da felicidade, caminhamos pela calçada que limita o jardim e a praia, aqui em Santos, no litoral paulista.
Já estamos habituados com olhares e comentários por conta de portarmos o objeto. Os olhares costumam ser de incredulidade: o que faz dois sujeitos caminhando pela praia portando um guarda-chuva? São turistas? Coisas de velho? Alguns, mais ousados questionam: – Estão chamando chuva? Fazendo a linha “simpático”, evito responder. Quando respondo, confirmo. E raramente uso a razão óbvia: estou me precavendo! Flávio, quando muito, sorri para os “enxeridos”.
Há dias recentes, quando ainda no alto verão resolvemos transformar o guarda-chuva em sombrinha, ou sombreiro. Final da manhã, dois guarda-chuvas negros pela avenida. Parecia coisa de outro mundo. E me passou pela cabeça comprar algo mais colorido, condizente com os dias claros e resplandecentes do nosso verão tropical. Nas poucas ocasiões que usamos o objeto nos protegendo dos raios solares não notei olhares, simplesmente pela falta de paciência para com atitudes adversas.
Entre lambuzar a pele com protetor solar e colocar um boné para combinar suor e cabelo, prefiro apenas usar o creme. Sem boné, cabelo ao vento, caminhar sem lenço, com documento, pela cidade que escolhi viver e que, embora amada, possui problemas. Quem não os tem?
Ciclistas são cidadãos que costumam fazer a maior gritaria por seus direitos. Uma quantidade considerável desses seres acha normal pedalar com todas as forças, não respeitar sinais, não respeitar passagens para pedestres. Aqui na cidade, com muitas e muitas pistas exclusivas para ciclistas, é comum que tais pessoas caminhem na contramão, o que, em avenidas sem as tais pistas significa pedalar sobre o passeio. São assustadores. Eles não usam guarda-chuva. Eu uso! E é engraçado vê-los desviando do objeto quando colocado atravessado sobre meu corpo. Guarda-chuva passa a ser também um sutil escudo.
Outro problema que tem se agravado na região são os assaltos. Garotos de bicicleta (Bicicleta? De novo!) passam e roubam celulares, bolsas e carteiras. Normalmente em duplas, costumam agir com um primeiro fazendo uma volta tendo o transeunte como referência que, atento ao primeiro, não percebe a aproximação do segundo que faz a abordagem criminosa. Prefiro caminhar sem dinheiro, com um documento, sem telefone e… meu guarda-chuva. Evito dissabores e sinto-me protegido de sol ou chuva. E me ocorrem ideias de autoproteção com meu simpático guarda-chuva!
Espero não ter que usar meu útil objeto como arma. Todavia, brincando, costumo afirmar que estão entre os meus objetivos… Como se fosse um cavaleiro medieval portando sua lança para derrubar o inimigo. Como um selvagem abatendo a presa, lançando-a contra o alvo. Espero que nenhum incauto interprete este singelo texto como incentivo. São apenas devaneios malucos, desses que a gente tem cotidianamente, sublimando a vontade de ato criminoso perante a violência.
Não pretendo nenhuma ação violenta. Nem chego a pensar no guarda-chuva como arma secreta de super herói. Quero continuar usando quando e como quiser. Quantas vezes for necessário e, se não houver necessidade, caminhar com ele do jeito que quiser. Prefiro reviver Charles Chaplin e caminhar alegre e feliz por onde for o meu destino. Proteger-me do sol quando me aprouver e, em dias de chuva, se o momento for propício brincar, cantar e dançar sob a chuva, mesmo estando a mil quilômetros luz do talento de Gene Kelly.
De volta, passando pela portaria, fomos abordados: “Como, andar nesse dia gostoso com esse guarda-chuva! Que estranho. Não vai chover!” Com humor e gestos improvisados, mostrei como posso usar o objeto como escudo, como proteção, como arma. Entre risos, a ideia não foi de todo descartada. Preciso retomar o assunto na primeira oportunidade: São só devaneios! Guarda-chuva é bom mesmo só contra chuva e sol!
A frase, sempre dita com a penúltima sílaba esticada, “trabalhadooooooooores”, faz gente da minha geração ter remotas lembranças de Getúlio Vargas. O cidadão deu um tiro nos miolos em agosto de 1954, antes de eu nascer, e tal ato não foi por conta de trabalho, mas pelo então presidente não abdicar do poder. Getúlio, por favorecer políticas públicas aos trabalhadores, foi chamado e é lembrado como “pai dos pobres”. Conclusão temerosa, trabalhador é pobre! Vai ver é dessa premissa que vem tanto preconceito em relação ao trabalhador.
Surgiram arranjos sociais bastante interessantes em relação às atividades humanas. Para trabalhadores na indústria é mais comum utilizarem a expressão operários. E prestadores de serviço nas instituições públicas são os funcionários públicos. Note-se no públicos a distinção, porque outros nas mesmas condições são denominados apenas funcionários (o mínimo a se dizer desse é que não goza de estabilidade). A coisa é vasta. Dentro do funcionalismo público há os professores em três categorias básicas, das chamadas redes municipal, estadual ou federal. E outros tipos, muitos outros!
Há trabalhadores liberais, ou profissionais liberais. A expressão indica algum nível de especialização, embora a gente saiba que para todo e qualquer trabalho há níveis de especialização. Os ditos profissionais liberais frequentaram escola e, além de evitarem o título de trabalhador, é comum não conseguirem assentar um mísero tijolo, ou pintar dignamente uma grade. Essa formação de médicos, dentistas, advogados, entre outros ditos liberais, é colocada em escala superior na absurda hierarquia social, pois tão importantes quanto qualquer um desses citados são os trabalhadores que limpam nossas cidades, coletam nossos resíduos salvando-nos de pragas terríveis.
Nos últimos anos vimos crescer a quantidade e nos acostumamos com a expressão trabalhador informal. Nessa categoria estão milhões de pessoas sem direitos mínimos, alguns em condição de trabalho semiescravo. A relação entre exploradores e explorados no Brasil é tão intensa que não choca e não provoca grandes crises a constatação de trabalho escravo por aqui. Aliás, em qual presídio estão tais escravocratas?
Relações de trabalho caminham em conflito constante com as relações de poder. Ter poder implica, basicamente, poder sobre o outro. Parece um raciocínio bobo, mas é bom lembrar que o máximo que o maior poderoso consegue é bom tratamento médico, mas poder sobre certas doenças difíceis como o câncer, ou mais suaves como a gripe, o sujeito não tem. Também é bom recordar que a natureza costuma lembrar quem é que realmente manda com tempestades, secas, terremotos, pandemias… Resta ao idiota que pensa ter poder exercer este sobre o outro. Ele morrerá, como os sem poder em qualquer patamar da escala em que estejam também baterão com as botas.
Uma face interessante da história humana é buscar facilidades, empregar menor força física no trabalho. Domenico de Masi escreve maravilhosamente sobre o tema (Leiam O ócio criativo!). Da invenção da roda ao cozimento de alimentos facilitando as refeições, passando pelos meios de transporte e de comunicação, chegando aos robôs físicos e virtuais, são alguns exemplos de como o ser humano busca melhorar condições de vida através do menor esforço possível. Seria lindo, se a gente não tivesse a raça dos exploradores.
Explorador é aquele ser que nada faz além de um esforço mínimo para manter-se na tal condição. Tipo o rei da Inglaterra, tendo que abanar tchau para plebeu, ou a viúva do banqueiro fazendo festinha para alguma instituição de caridade. Nessa última situação os exploradores fazem marketing de bonzinhos e conseguem abatimento no imposto de renda. Há tipos de exploradores que, mesmo perdendo o poder, não perdem formas de exploração do outro: estou recordando aqui a tal família imperial que vive as custas de impostos cobrados do povo de Petrópolis.
Aumentos salariais em Primeiro de Maio ocorrem em meio a reinvindicações de diferentes categorias – aí, sim, todos trabalhadores – buscando melhores condições de vida. A evidência do poder exercido sobre o outro fica claro aqui, quando o trabalhador irá receber R$ 1.320,00, ou seja, 1,3% em contraponto com o salário do governador de Minas, que conseguiu atingir o sonho de muitos: dar-se reajustes salariais. Sem titubear e com apoio de iguais, o aumento foi de 300% e o salário do tal Zema foi para R$ 41.845,49. Notem o primor que é tal quantia! Imaginem quanta falta faria ao cidadão governador os R$ 0,49 centavos e, pior, quantas discussões e quantos embates seriam necessários para que R$ 845,49 fossem destinados ao trabalhador.
Primeiro de maio é dia para tomar consciência do distanciamento financeiro entre assalariados: uns recebendo o mínimo e outros, além de altas quantias, ainda não pagam passagens, telefone, luz, médico… Dia do Trabalhador é dia para repensar a sociedade e constatar as imensas diferenças entre as possibilidades de uns e outros. Fundamentalmente lembrar aos trabalhadores que são trabalhadores. Pensar e refletir sobre quem nos explora, por que nos explora e como podemos lutar para minimizar os efeitos nefastos de quem não se importa com as condições de vida daqueles que garantem os próprios privilégios.
Encontrando velhos conhecidos são comuns as expressões “você continua o mesmo!”, “Você não mudou nada!” ou similares. Parece-me que a maioria espera que concordemos, que retribuamos com um “você também”. Não é incomum um tom de ressentimento ao afirmarmos que “fulano mudou demais”, “beltrana não é a mesma de antes”. Essas constatações carregam um tom de traição, um sentimento de derrota: “Envelheceu, né!”.
Para com as pessoas públicas costumamos exigir maior permanência. Maria Bethânia diminuiu em muito as corridinhas pelo palco. Ganhou elegância no andar e no gracioso gesto com que reverencia e agradece ao público. Há quem cobre dela os motivos dos fios brancos! Wanderléa, sempre linda, teima em evitar as “provas de fogo” e os “pare o casamento”, cantando Sueli Costa ou gravando chorinhos, o trabalho atual. Os viúvos da Jovem Guarda saem desolados do show. “Wanderléa mudou muito”! É melhor o show de Roberto Carlos, onde “Emoções” não faltarão.
Estranhamento nacional, a postura política da ex-namoradinha do Brasil revelou uma pessoa bem esquisita, traição brutal às personagens meigas e carinhosas de tantas novelas. Ela mantém a postura, o jeito de menear a cabeça, o sorriso aberto, a caricatura que, o tempo clareou, esconde uma mulher bem diferente. Imediatamente passou a ser chamada de velha! Para alguns, talvez, a suprema ofensa para as mudanças percebidas e a vaidade de Regina Duarte.
Parece que as mudanças não são bem-vindas justamente por nos obrigarem a enfrentarmos as nossas próprias mudanças. Os muitos quilos, as muitas rugas, todos os pelos e cabelos esbranquiçados, a ausência de viço na pele, estão entre as evidências que disfarces, pinturas e maquiagens os mais evidentes só fazem acentuar.
Todo mundo tem espelho e momentos de encarar os efeitos do tempo. A visão cotidiana nos ilude fazendo com que nos sintamos os mesmos, o que não evita nosso espanto quando encaramos fotos antigas que acentuam as mudanças que carregamos, e que caminham, aliadas ao tempo, nos transformando. Infinitamente pior que o espelho são os males que atingem os nossos corpos, incapazes de manter a permanência que mora na nossa vontade. Consultórios e clínicas entram no nosso cotidiano proporcionalmente ao tempo que estamos no planeta. Mais tempo, mais médicos.
Estamos de passagem e a expressão “viagem” ao invés de “morte” é bem melhor. Também há quem prefira “experiente” a “velho”. A realidade, por pior e difícil que possa parecer, é o que temos e, portanto, melhor que a ilusão. Não somos mais os mesmos! Nossos ídolos não são mais os mesmos. Aceitar essa questão é o que nos possibilita maior empatia para com fases da vida de todos – jovens, adultos ou velhos. O que é absurdo é constatar o universo em movimento, as transformações contínuas da natureza e pensar que nos mantivemos imutáveis. Como se houvesse um dia para tomar consciência de si e fixar tal data. Que bobagem!
P.S. 1 – É óbvio que quem vos escreve já passou dos 60. Gosto de Bethânia desde Carcará, de Roberto, desde O Calhambeque e de Wanderléa, desde O tempo do amor. Assisti quase todas as novelas protagonizadas por Regina Duarte, e atualmente tento esquecer a decepção para não espinafrar a atriz.
P.S. 2 – Acredito estar de passagem e estou lendo textos sobre projeções da consciência. A ideia de experiências fora do corpo físico me atraem cada vez mais. Penso sempre em viagens astrais observando o movimento de nuvens no céu sobre o mar.
P.S. 3 – A decisão em escrever o texto acima foi após ter visto vídeos de fragmentos recuperados da Jovem Guarda. Como Roberto Carlos e Wanderléa mudaram!