Destinos, de Aguilar, na Benedito Calixto

16 telas da série “Qual é o seu destino?”, de José Roberto Aguilar, estão expostas na Pinacoteca Benedito Calixto, em Santos, dentro do projeto Arte na Pinacoteca. A série, em pequenas dimensões (1 m x 1 m), é apresentada em três salas compondo suavemente com o ambiente aconchegante do antigo casarão à beira-mar. O registro de uma performance está na sala menor central e, no salão principal, está a tela (2,10m x3,60m) “Olhai os lírios nos campos”, criando um belo contraste entre a arquitetura Art Nouveau do local e a obra de Aguilar.

Olhais os lírios no campo, de Aguilar, harmonizando com o Art Nouveau da Pinacoteca.

A tela “Olhai os lírios nos campos”, em suas grandes dimensões, nos permite uma imersão e uma relação distinta com a obra. Carecemos da distância que o espaço permite para ver o todo e, simultaneamente, temos a possibilidade da aproximação e visualização dos motivos presentes e da técnica utilizada pelo artista.

Os curadores da mostra Carlos Zibel e Antonio Carlos Cavalcante assim apresentam a obra: “A grande tela ‘Olhai os lírios nos campos’ guarda familiaridade com muitas pinturas anteriores, caracterizadas por uma visibilidade imediata sem recursos pictóricos tradicionais – mesmo em pinturas abstratas como as que Aguilar apresenta nesta oportunidade, tais como sugestão de linha de horizonte, prumo, requadros, formas geométricas ou manchas orgânicas – que, de algum modo, poderiam criar espacialidades ou apoio visual a uma leitura ‘naturalista’ do trabalho”.

Detalhe da exposição Destinos, de José Roberto Aguilar, em Santos, SP.

Sobre as telas da série os curadores escreveram: “Em ‘Qual o seu destino?’ o artista escolheu como suporte os pequenos formatos. Telas que podem ser convenientemente apreciadas a uma curta distância. Perde-se boa parte daquela sensação de envolvimento, mas se aperfeiçoa a percepção relacional. Mesmo que emocionado e envolvido pelas artes dessa pintura sensual, o olhar torna-se mais atento às múltiplas leituras oferecidas pela tela como um todo”.

Pablo Picasso disse, há bastante tempo, que “não existe tampouco arte figurativa e não-figurativa. Todas as coisas nos aparecem soba a forma de figuras”. Entre o ver e o não ver, é uma possibilidade de postura perante o trabalho de Aguilar. Podemos tentar desvendar cada imagem proposta, sabendo que nossa percepção está atrelada ao nosso repertório pessoal. Podemos simplesmente fruir e usufruir das propostas do artista, viajando na técnica, na maneira de colocar empastes, na utilização das cores e na interação entre cores e formas. Deixar que cada imagem se aproxime ou se distancie do nosso destino, encontros possíveis entre os “Destinos” propostos por Aguilar.

A exposição iniciada dia 11 de maio termina no próximo 11 de junho. Portanto, moradores e turistas visitando a cidade não percam a oportunidade de visitar essa mostra, primeira que o artista faz em Santos.

José Roberto Aguilar (1941) é um dos pioneiros da nova figuração no Brasil. Integrou o movimento Kaos, participou da 7ª Bienal (1963) e da Mostra Opinião (1965) no Rio de Janeiro. Viveu no final da década de 1960 até 1975 temporadas em Londres e New York, onde inicia trabalhos como videomaker. Retorna em São Paulo participando da 14ª Bienal e prosseguindo intensa carreira, o que faz dele um dos mais renomados artistas paulistanos.

Serviço: Pinacoteca Benedito Calixto – Av. Bartolomeu de Gusmão, 15 – Santos. Funciona de Terça a domingo, das 9h às 18h.

Wanderléa: “Amo, respiro e ainda sei cantar!”

As grandes gravadoras – ditas majors – nunca facilitaram a vida de nenhum artista. E a história guarda fatos e conflitos envolvendo vários dos maiores cantores, compositores e instrumentistas brasileiros. O artista faz sucesso e as majors passam a encarar a pessoa como produto, uma marca; algo que para manter o ciclo deve fixar tais características, ser sempre o mesmo, fazer tudo igual. Há os que resistem! Wanderléa é uma entre esses.

Quem segue a carreira da cantora sabe que os primeiros discos foram na Colúmbia, depois vieram outros de imenso sucesso na CBS, nesta cobrindo o período da Jovem Guarda. É bem provável que Wanderléa teria o mesmo destino de outras cantoras das jovens tardes de domingo, caso gostasse da ideia de manter-se ternurinha, maninha do rei Roberto. Ela queria mais e foi para a Polydor. O primeiro sucesso na nova gravadora deixava uma mensagem muito clara, em letra da própria cantora:

De repente acordei,

Vi que o sonho acabou para mim.

De repente, eu só sei, adeus! (Bye, Bye)

Talvez muitos fãs não tenham entendido o recado. De qualquer forma, Wanderléa manteve seus propósitos e o primeiro LP, Wanderléa Maravilhosa (1972) na nova empresa é um marco, deixando a Ternurinha lá na década de 60. Mais ou menos! Penso que foi imposição da gravadora ter uma versão de Rossini Pinto em meio a canções incríveis de Gilberto Gil, Assis Valente, Hyldon, Jorge Mautner. Mata-me depressa, a canção, é um pé preso ligando a cantora ao público acostumado com as canções do período anterior.

No segundo disco da Polydor a mineira e geminiana Wanderléa radicalizou com um naipe de compositores de primeiríssimo time no disco Feito Gente (1975): Gonzaguinha, Sueli Costa, Joyce Moreno, João Donato, Gilberto Gil, Luiz Melodia, e entre outras feras Walter Franco. Não se pode dizer que seja um disco de sucesso de massa e os tais fãs, aqueles do Pare o Casamento, ficaram por aí, pedindo e insistindo pelas Provas de Fogo da vida. Wanderléa deixou a Polydor.

Artista que se preza não se entrega, rompe barreiras, quebra paradigmas. Na nova gravadora, a Emi-Odeon, Wanderléa reiterou o recado dado no primeiro disco da Polydor ao unir-se a Egberto Gismonti para fazer aquele que é um grande marco musical de sua carreira: Vamos que eu já vou! (1977) E creio ser desse período o imenso prestígio que Wanderléa tem no meio musical. Se já era respeitada pela trajetória juvenil dos sucessos que nunca sairiam da memória dos fãs, é na Polydor e na Emi-Odeon que a cantora deixou claro que seguiria firme no objetivo de ir muito além. Veio Mais que a paixão (1978) com repertório caprichado privilegiando grandes compositores e participações especiais de Djavan, Moraes Moreira e Egberto Gismonti, o autor da canção que dá título ao LP.

Interessadas em maiores vendagens, as gravadoras tentaram impor à Wanderléa uma volta ao jeito Jovem Guarda. Um longo jogo visível em vários dos discos seguintes quando, sem muita razão de ser, entre gravações inéditas colocam “lembranças” com regravações de antigos sucessos. Junte-se a isso muitas coletâneas mesclando as diferentes fases. Enquanto isso a cantora fazia participações em discos de diferentes colegas, além de emplacar vários êxitos em trilhas de novelas. O público da fase juvenil manteve-se fiel, novas gerações passaram a seguir seu trabalho.

Em 2008 Wanderléa lança Nova Estação, pela Lua Music. O disco recoloca a cantora interpretando samba, blues, choro. E, em seguida, em 2013, grava ao vivo no Theatro Municipal de São Paulo o Wanderléa Maravilhosa. Novamente um marco denotando que a partir de então a cantora fará somente o que quiser. Isto inclui, inclusive, um retorno triunfal à Jovem Guarda no Show “60! Década de Arromba. Doc. Musical” (2016). Longa temporada no Rio de Janeiro e em São Paulo, depois percorrendo as principais cidades do país, a Ternurinha fazendo a plateia chorar de emoção ao rever os anos de 1960. Paralelamente, ela lançou Vida de Artista, com todas as faixas compostas por Sueli Costa, um disco suave e emocionante.

Nesta sexta-feira, 27 de maio, Wanderléa esteve no Sesc Santos com seu novo trabalho, onde canta chorinhos clássicos da história da MPB. Acompanhada por um octeto formado por ótimos músicos, a cantora apresentou todas as músicas do cd Wanderléa choros, do selo SESC. Confessando ser um sonho acalentado desde a infância quando ouvia no rádio Ademilde Fonseca, a cantora faz um resgate memorável do ritmo brasileiro esbanjando dicção, ritmo e interpretação, sempre com muita segurança. Os fãs estão presentes e em alguns momentos ouve-se um “canta senhor juiz” e outras canções da Jovem Guarda. Wanderléa encerra o show com Ternura, o primeiro mega sucesso de sua longa carreira. Passeia pela plateia, carinhosa e atenciosa para com quem a ama.

De volta ao palco, aclamada com pedidos de bis, prioriza os chorinhos, é o que quer cantar nesse momento. E a gente fica muito feliz por ela conseguir não ter se dobrado ao que as gravadoras quiseram para ela. O mínimo que podemos desejar aos artistas que amamos: Serem eles mesmos sobre o palco, fazendo e cantando o que bem quiserem.

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Obs. No título, o verso “Amo, respiro e ainda sei cantar” é da música Carne, osso e coração, de Joyce Moreno, incluída no show Wanderléa canta choros.

Histórico do Financiamento da Cultura no Brasil

Uma palestra sobre os mecanismos de financiamento é o que Sonia Kavantan, com propriedade, nos apresenta em palestra gravada neste maio de 2023, ou seja, conteúdo atualizado conforme os acontecimentos recentes no país.

Profissionais de arte, marketing e comunicação passam a ter uma fonte segura de informação e reflexão.

Esse conteúdo é apresentado pelo Governo do Estado de São Paulo por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, e foi produzido com recursos do Proac Expresso Direto n.º39/2021.

Ficha técnica:

Palestrante e conteúdo: Sonia Kavantan
Produção: Rogério Barsan
Divulgação: Tiago Barizon
Gravação e limpeza: Felipe Leite
Produção e sonoplastia: Fabio Gondariz
Edição: Juliano Alves
Estúdio: geek/conteúdo
Realização: Kavantan Projetos e Eventos Culturais

Ladrões de bicicleta

Poderia escrever sobre o filme Ladrões de Bicicleta, do premiado diretor Vittorio De Sica. Mesmo porque não sei se eram ciclistas ou ladrões do veículo os dois garotos presos hoje, pela manhã, aqui bem próximo de casa, em Santos. O aparato policial era escandalosamente desproporcional. Cinco viaturas para dois garotos. Cinco! No cruzamento, fazendo o entorno do canal 4 estavam os veículos, os policiais e sentados no passeio, como se tomando sol, dois adolescentes.

Ladrões de bicicleta (1948) – Divulgação

Eram dois garotos desses muitos que pedalam pela cidade. De bermuda, camiseta, pele e cabelos queimados de sol. Sem os dez guardas no entorno e seriam dois adolescentes passando o tempo sob o sol de outono. Observando mais atentamente via-se que estavam um tanto sérios, aparentando calma, mas com os braços cruzados de forma tensa, as pernas retesadas. Sabe-se lá que destino teriam enquanto os policiais, não sei o motivo, esperavam um não sei o quê.

Teriam roubado alguém ou alguma bicicleta? No filme italiano de 1948 um pobre desempregado recupera sua bicicleta que estava “pendurada” ao conseguir um emprego. Logo em seguida é roubado, privado do veículo que seria essencial para o trabalho. Esse é o filme de De Sica. Os ladrões daqui são bem distintos. Aqui em Santos e na vizinha São Vicente há um modus operandi de garotos ladrões que usam bicicletas para aproximação e fuga rápidas. Atacam turistas ou pessoas mais velhas, distraídas e sós. Um vem e faz uma curva em volta do pedestre e o segundo completa o ato, roubando carteira, telefone, bolsa ou qualquer outro objeto que possa ter valor.

Sem saber se roubaram uma bicicleta ou se eram ladrões de outra coisa segui meu rumo, sem antes ouvir mesmo sem querer algumas falas do tribunal popular já instalado no lado oposto. “Daqui a pouco estarão soltos, guardem a cara! Logo voltarão por aqui” disse um senhor. Ao que uma mulher ponderou: “Poderiam estar trabalhando, não é? A gente, nessa idade já trabalhava. Hoje, não pode trabalhar”. E eu segui, sem atentar para outros bochichos ou comentários. Fiquei pensando nos meninos, ladrões, que poderiam ser aqueles outros, famosos da literatura de Jorge Amado, os Capitães da Areia.

Capitães da Areia – Imagem divulgação do filme de 2009

Os meninos relatados por Amado perambulam pelas praias da Bahia, são os donos da cidade de São Salvador. O escritor nos faz ver o quão há de humano em cada personagem fazendo emergir o modo de ser, a história, a índole de cada um. Com os Capitães da Areia aprendi a olhar meninos que, por diferentes circunstâncias estão nas ruas. Não são meninos de rua. Estão lá por algum problema social que, sendo social, é nosso. Confesso ter tido mais tranquilidade no passado, quando minha juventude facilitava o distanciamento dessas personagens que, percebo com clareza, não me olham, mas me examinam. Mantenho-me atento e esta é a única defesa possível.

Sendo alvo dessas personagens, ou seja, velhote andando sozinho pela rua ou pela calçada da praia, não me sinto confortável, embora não me passe pela cabeça ficar longe do mar. Deixando cartões e carteira em casa estou certo de, sendo roubado, não perder lá grande coisa; o que não me impedirá de levar uns sopapos que, imagino, venham acompanhados de palavrões e desaforos: “Tem vergonha não, tio! Tá mais pobre que a gente!”. Outro dia no ponto de ônibus um me pediu 10 reais. Eu não tinha. Deixou por 5, eu também não tinha. Pelo menos 2, disse ele, exasperado! E eu, já meio sem jeito, disse estar apenas com a Identidade para usar como passagem. E ele se foi, irritado, me desaforando: “Se eu tivesse juro que te daria”. Eu ri, pensando que receberia sem pestanejar.

Há uma série de moradores nos jardins da praia e já conheço muitos deles. São gente boa. Vivem de bicos, tipo levar mesas e cadeiras de praia para locais próximos. Trabalho pesado. A maioria deles tem cachorro, o Caramelo é famoso, e já conheço uma senhora, boa alma, que os visita, trás remédios, leva para socorro médico. Estão invariavelmente limpos, pois água é o que não falta. Falta comida e, parece, sobra bebida. Volta e meia estão discutindo, uns afanando coisas dos outros. “Cadê meu celular?”, “Você bebeu tudo enquanto eu estava dormindo”. No mais, o máximo que podem nos fazer é pedir cigarro, um trocado, ou comida. Parece haver um acordo tácito: eles não nos incomodam e assim convivemos. Tenho medo mesmo é dos que andam em bicicletas.

Santos possui uma extensa rede de ciclovias, todavia os ciclistas deixam muito a desejar na cidade. Andam sobre os passeios, na contramão, não respeitam semáforos e muito menos pedestres. A velocidade é daquela do velho ditado – tão indo tirar alguém da forca. Na imensa orla que mal permite aos desavisados distinguir Santos de São Vicente há ciclovia em mão dupla. No entanto, mesmo com avisos de proibição, os ciclistas invadem os jardins e a calçada rente à praia. Nunca sabemos se são só cidadãos desobedientes ou se são os já temidos ladrões, notícias frequentes nos jornais.

Ainda em fase de transição de governos, ainda sob efeitos da pandemia e todas as mazelas econômicas penso ser óbvio que o roubo vem de algum problema concreto. Não pretendendo um tratado de sociologia me resta permanecer atento e, quando possível, fazer e exigir dos responsáveis algo pela educação e formação de crianças e adolescentes. Sem escola, os pais desempregados ou com salários irrisórios, há aqueles que não pedirão, roubarão. Simples assim.

Ou tomamos atitude, ou somos cúmplices!

Uma cena grotesca e absurda: um rapaz enfrenta a multidão que vocifera e expõe sentimentos torpes, baixos, indignos de seres humanos. Vini Jr está em uma arena onde deveria ser no mínimo respeitado por quem não o consegue vencer. Este é o triste motivo do crime cometido pela torcida adversária: o atleta do Real Madri, junto a seus pares, subjuga o Real Valência. Impotentes diante da superioridade de quem lhes impõe uma derrota, para a torcida covarde sobra a estupidez e a ofensa criminosa.

Um resultado imediato revela outro absurdo. Vini Jr. é expulso. Os criminosos não são autuados, nem sofrem sansão flagrante. A vítima sai de cena sem que seus colegas tomem seu partido. Sim, um fato que evidencia a individualidade em um esporte que deveria ser coletivo. O ataque da torcida covarde é contra um atleta. Os europeus do Real Madri não são ofendidos e nem saem do campo em apoio ao colega ofendido. O dirigente do Real Madri demorou para se manifestar e o dirigente da “La Liga” criticou o jogador. Infeliz atleta que tem por sina a excelente qualidade do seu futebol!

Certamente não há nada de novo a ser dito sobre o que acontece com o jogador de futebol Vini Jr. na Espanha. Por isso mesmo devemos repercutir, insistir, denunciar à exaustão. Por isso devemos expor patrocinadores dessa cena grotesca. Os patrocinadores dos dois times e da Liga. E devemos exigir das autoridades espanholas ações enérgicas e eficazes visando punir os criminosos. E que ninguém venha dizer que é impossível identificar cada criminoso, posto que pelo mundo afora sobram exemplos de que é possível buscar cada manifestante no meio de uma torcida, de uma multidão.

Torcedores inflamados costumam perder o controle em uma partida importante. Se desesperam, gritam, choram. Conversam com a televisão amaldiçoando o juiz, o treinador e, dentro de um estádio de futebol, essas sensações se multiplicam e explodem no ato coletivo, na cumplicidade entre iguais. Nesses momentos conhecemos o verdadeiro caráter de muitos em meio a uma torcida. Em algumas ocasiões extrapolam o limite entre o civilizado e o irracional expondo, sobremaneira, uma imensa covardia. Será que cada criminoso, entre os muitos naquele estádio, teria a coragem de agir da mesma forma quando só? O corajoso que esbraveja com apoio de iguais usaria as mesmas ofensas em um cara a cara com o ofendido? Covardes.

Vini Jr. é um atleta. Um ser humano! Foi vergonhosamente ofendido por espanhóis, dentro de um estádio espanhol, em território espanhol. Que todas as medidas judiciais cabíveis sejam tomadas e, enquanto isso não ocorrer, só podemos lamentar e denominá-los cúmplices. Os dois times, La Liga, as autoridades espanholas. Se a Espanha apresenta neste momento os melhor futebol do mundo, que este não tenha por base o crime e a barbárie.

Palmiras

D. Palmira, a Tia acima e Palmirinha.

Por um bom período moramos lado a lado. A proximidade de relações entre nossas famílias facilitou a ausência de muros e são lembranças muito fortes quando, pela manhã, vinham mães com crianças doentias, algumas bem choronas. Sem muita conversa, D. Palmira caminhava pelo quintal colhendo pequenas porções de ervas; arruda era a mais comum. Sem tirar a criança do colo da mãe, D. Palmira fazia o sinal da cruz em si e na doentinha. Iniciava o benzimento falando bem baixinho; a mais frequente ação era para tirar o quebranto.

“Tu tens quebranto, dois te puseram, três hão de tirar… em nome das três pessoas da Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.

Outros tempos quando para qualquer mal o primeiro socorro era o benzimento. De crianças perebentas tirava-se o “cobreiro brabo” e cabia ao paciente responder três vezes à pergunta da benzedeira: “O que é que eu tiro?” E ouvia-se a voz débil, “cobreiro brabo!”. D. Palmira para uns, Madrinha Bia para outros, era mulher risonha, adorava um bom prato e estava sempre disposta ao trabalho, ajudando a filha a cuidar de nove crianças, seus netos. Creio que a maioria das crianças do bairro e outro tanto de adultos receberam as bençãos daquela mulher, viúva simples e pobre, que jamais cobrou um tostão pelo trabalho.

Minhas recordações de Tia Palmira são distintas. Irmã caçula de minha avó, tinha um rosto alvo, sempre muito bonita e sorridente. Recordo a tia lutando pela saúde do marido, Tio Alcides. Ela não mediu esforços buscando a cura para a doença que, penso eu, devia ser desses males difíceis. Foi a primeira vez que ouvi falar em Zé Arigó, o famoso médium que recebia o espírito do Dr. Fritz. A Tia Palmira levou o marido até Congonhas do Campo, em Minas Gerais, para que este fosse operado espiritualmente. O médium foi honesto e afirmou que a ação seria paliativa, pois não haveria cura. Todavia, maior poder tem Deus e Tia Palmira continuou. Em Uberaba procurou Chico Xavier e lá também frequentava o Sr. Eduardo, ou Eduardinho, que trabalhava com ervas, beberagens, garrafadas.

À morte inevitável do marido ocorreu longo período de luto. Dez anos vestindo-se com roupas pretas. Cabe ressaltar que esse fato ocorreu bem antes do vestido “pretinho básico” das elegantes de ocasião. Tia Palmira não se preocupava com moda, mas com o respeito que achava que devia ao falecido. Passado o luto, voltou a sorrir, a usar joias e a se maquiar. Sendo bonita, logo reencontrou antigo afeto com quem se casou e foi feliz. A última vez que nos encontramos foi no velório de minha avó e Tia Palmira, com boa dose de humor macabro, afirmava entre risos contidos ser a próxima. “Estou tão ruim! Logo, logo vou eu!”.

Não tendo hábito de assistir programas de culinária vi poucas vezes a simpática Palmirinha, mas quando a vi estava sempre cozinhando com bom humor e afeto. Tive tempo de perceber a relação da cozinheira para com seu trabalho. Um aprendizado necessário: cozinhar com alegria e afeto, uma tarefa primordial para a relação que se estabelece entre as pessoas. Cozinhar para si e para o outro! Algo a ser estimulado posto que hoje em dia é comum encontrar pessoas que rejeitam o fazer uma refeição como se essa não fosse fundamental para qualquer ser humano.

A história de Palmirinha, descobri nos obituários, é bastante densa, com uma infância e juventude sofridas. Embora todo o passado conturbado e difícil, tornou-se a mulher doce, a apresentadora simpática e a cozinheira amorosa. Deixou-nos a lição fundamental do bom humor e da alegria no ato de transformar ingredientes em refeições deliciosas. Ensinou-nos, como alguns de seus pares ensinam, que cozinhar é uma arte, um terreno de criação e transformação.

D. Palmira, Tia Palmira, D. Palmirinha! Três mulheres tão distintas e, percebo agora, tão próximas no sorriso, nas relações com a vida, com o trabalho, com o outro. São mulheres que deixaram lembranças doces. Para elas destinamos vibrações carinhosas, desejando-lhes em dobro o que por nós aqui fizeram.

Guarda-chuvas e devaneios

Há dias em que, inevitável questionar se é ou não futilidade, temos que ir às compras. Não dá para esperar a melhor oferta, a liquidação ou qualquer outra artimanha do comércio. A necessidade fala mais alto e lá fomos nós caminhando atentos pelas ruas da cidade e, simultaneamente, despreocupados. O céu nublado nos levou a portar um guarda-chuva. Sem medo da felicidade, caminhamos pela calçada que limita o jardim e a praia, aqui em Santos, no litoral paulista.  

Já estamos habituados com olhares e comentários por conta de portarmos o objeto. Os olhares costumam ser de incredulidade: o que faz dois sujeitos caminhando pela praia portando um guarda-chuva? São turistas? Coisas de velho? Alguns, mais ousados questionam: – Estão chamando chuva? Fazendo a linha “simpático”, evito responder. Quando respondo, confirmo. E raramente uso a razão óbvia: estou me precavendo! Flávio, quando muito, sorri para os “enxeridos”.

Há dias recentes, quando ainda no alto verão resolvemos transformar o guarda-chuva em sombrinha, ou sombreiro. Final da manhã, dois guarda-chuvas negros pela avenida. Parecia coisa de outro mundo. E me passou pela cabeça comprar algo mais colorido, condizente com os dias claros e resplandecentes do nosso verão tropical. Nas poucas ocasiões que usamos o objeto nos protegendo dos raios solares não notei olhares, simplesmente pela falta de paciência para com atitudes adversas.

Entre lambuzar a pele com protetor solar e colocar um boné para combinar suor e cabelo, prefiro apenas usar o creme. Sem boné, cabelo ao vento, caminhar sem lenço, com documento, pela cidade que escolhi viver e que, embora amada, possui problemas. Quem não os tem?

Ciclistas são cidadãos que costumam fazer a maior gritaria por seus direitos. Uma quantidade considerável desses seres acha normal pedalar com todas as forças, não respeitar sinais, não respeitar passagens para pedestres. Aqui na cidade, com muitas e muitas pistas exclusivas para ciclistas, é comum que tais pessoas caminhem na contramão, o que, em avenidas sem as tais pistas significa pedalar sobre o passeio. São assustadores. Eles não usam guarda-chuva. Eu uso! E é engraçado vê-los desviando do objeto quando colocado atravessado sobre meu corpo. Guarda-chuva passa a ser também um sutil escudo.

Outro problema que tem se agravado na região são os assaltos. Garotos de bicicleta (Bicicleta? De novo!) passam e roubam celulares, bolsas e carteiras. Normalmente em duplas, costumam agir com um primeiro fazendo uma volta tendo o transeunte como referência que, atento ao primeiro, não percebe a aproximação do segundo que faz a abordagem criminosa. Prefiro caminhar sem dinheiro, com um documento, sem telefone e… meu guarda-chuva. Evito dissabores e sinto-me protegido de sol ou chuva. E me ocorrem ideias de autoproteção com meu simpático guarda-chuva!

Espero não ter que usar meu útil objeto como arma. Todavia, brincando, costumo afirmar que estão entre os meus objetivos… Como se fosse um cavaleiro medieval portando sua lança para derrubar o inimigo. Como um selvagem abatendo a presa, lançando-a contra o alvo. Espero que nenhum incauto interprete este singelo texto como incentivo. São apenas devaneios malucos, desses que a gente tem cotidianamente, sublimando a vontade de ato criminoso perante a violência.

Não pretendo nenhuma ação violenta. Nem chego a pensar no guarda-chuva como arma secreta de super herói. Quero continuar usando quando e como quiser. Quantas vezes for necessário e, se não houver necessidade, caminhar com ele do jeito que quiser. Prefiro reviver Charles Chaplin e caminhar alegre e feliz por onde for o meu destino. Proteger-me do sol quando me aprouver e, em dias de chuva, se o momento for propício brincar, cantar e dançar sob a chuva, mesmo estando a mil quilômetros luz do talento de Gene Kelly.

De volta, passando pela portaria, fomos abordados: “Como, andar nesse dia gostoso com esse guarda-chuva! Que estranho. Não vai chover!” Com humor e gestos improvisados, mostrei como posso usar o objeto como escudo, como proteção, como arma. Entre risos, a ideia não foi de todo descartada. Preciso retomar o assunto na primeira oportunidade: São só devaneios! Guarda-chuva é bom mesmo só contra chuva e sol!