E lá se foi Astrud!

Às vezes é bom parar e fazer uma indagação básica sobre os reais motivos de certas coisas como, por exemplo, o Brasil pouco conhecer Astrud Gilberto, a cantora falecida aos 83 anos lá longe, nos EUA, em 5 de junho passado. É bem verdade que as velhas gerações sabem que ela foi casada com João Gilberto. Os apaixonados por Bossa Nova sabem que é dela a voz da primeira gravação da música Garota de Ipanema em inglês. Um estrondo mundial! Mas, parece que fica nisso.

Baiana de nascimento, Astrud Gilberto continuou com o sobrenome do marido famoso, após poucos anos de casamento. Um marido “legal” que excluiu o nome da moça nos créditos do disco de 1964 que tornou a canção, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes ,a segunda música mais gravada do mundo. Astrud puxou a onda e ganhou o Grammy Award lá, debaixo do nariz das americanas. Não foi o primeiro, nem o único. A carreira de Astrud tinha tudo para ficar no primeiro disco, já que para Stan Getz, o cara que a acompanha em Garota de Ipanema, ela era apenas uma dona de casa… Não se sabe bem o que uma dona de casa estaria fazendo dentro de um estúdio, exceto para ser vítima de machismo. Já a cantora, seguiu em frente.

Dos dezenove álbuns que compõem a discografia da cantora, fora as participações como convidada em faixas de outros discos, pouquíssimo se ouviu dela no Brasil. Se foi difícil na era do disco físico, pelo menos agora podemos ter acesso a doce voz da cantora e compositora brasileira. Vale a pena ouvir. E vale a pena se perguntar: por que temos a mania de não valorizar nossos artistas, principalmente os que fazem sucesso no exterior? Aconteceu com Carmen Miranda, mas também é algo que acontece com Joyce Moreno, que canta mais no Japão do que aqui, na terrinha. O Trio Esperança, aquele da Jovem Guarda, gravou CDs incríveis na França e, por aqui, ninguém conhece esse trabalho. E por vamos nós e vão nossos artistas.

O triste é sermos levados pela indústria, impondo-nos gente medíocre, músicas de gosto para lá de duvidoso, mas com apelo fácil e, portanto, atingindo o público.  Um grande “sucesso” musical passa primeiro pelo pagamento de grana para que o “artista” apareça na televisão, sem mais nem menos, com espaço para apresentar duas, três, ou mais canções. Esses mesmos, que compram sucessos em “fábricas” onde um reduzido vocabulário incita ao álcool enquanto lamenta dores de corno. As cervejas adoram e patrocinam. Para que pensar, se beber é mais fácil?

Certamente essa gente de sucesso das grandes festas e feiras não é responsável pela nossa desatenção para com artistas nacionais que fazem carreira no estrangeiro. Com certeza não é problema que pare o país. Todavia, seria bom a gente se perguntar os motivos de idolatrarmos tanto os estrangeiros e, quando um dos nossos faz sucesso por lá, por aqui nem os iguais – aqui, estou explicitando os baianos – costumam aplaudir. Uma questão incômoda. Cantores e compositores baianos aclamam com justiça João Gilberto, mas colocam outros, como Astrud, num estranho limbo.

Lá se foi Astrud! Longe do Brasil. Aclamada pela mídia de todo o planeta, que fez questão de lembrar que a moça recebeu míseros 120,00 dólares pela gravação de Girl from Ipanema. O mínimo que o sindicato americano permitia a um profissional do setor. Todavia permanecerá lembrada pela primeira canção e por outras, como Fly me to the moon, Berimbau, A Certain Sadness, Ponteio e, entre dezenas de gravações competentes, uma deliciosa versão de A Banda, de Chico Buarque (Parade, na versão cantada pela cantora). Insisto: Vale a pena ouvir!

Wanderléa: “Amo, respiro e ainda sei cantar!”

As grandes gravadoras – ditas majors – nunca facilitaram a vida de nenhum artista. E a história guarda fatos e conflitos envolvendo vários dos maiores cantores, compositores e instrumentistas brasileiros. O artista faz sucesso e as majors passam a encarar a pessoa como produto, uma marca; algo que para manter o ciclo deve fixar tais características, ser sempre o mesmo, fazer tudo igual. Há os que resistem! Wanderléa é uma entre esses.

Quem segue a carreira da cantora sabe que os primeiros discos foram na Colúmbia, depois vieram outros de imenso sucesso na CBS, nesta cobrindo o período da Jovem Guarda. É bem provável que Wanderléa teria o mesmo destino de outras cantoras das jovens tardes de domingo, caso gostasse da ideia de manter-se ternurinha, maninha do rei Roberto. Ela queria mais e foi para a Polydor. O primeiro sucesso na nova gravadora deixava uma mensagem muito clara, em letra da própria cantora:

De repente acordei,

Vi que o sonho acabou para mim.

De repente, eu só sei, adeus! (Bye, Bye)

Talvez muitos fãs não tenham entendido o recado. De qualquer forma, Wanderléa manteve seus propósitos e o primeiro LP, Wanderléa Maravilhosa (1972) na nova empresa é um marco, deixando a Ternurinha lá na década de 60. Mais ou menos! Penso que foi imposição da gravadora ter uma versão de Rossini Pinto em meio a canções incríveis de Gilberto Gil, Assis Valente, Hyldon, Jorge Mautner. Mata-me depressa, a canção, é um pé preso ligando a cantora ao público acostumado com as canções do período anterior.

No segundo disco da Polydor a mineira e geminiana Wanderléa radicalizou com um naipe de compositores de primeiríssimo time no disco Feito Gente (1975): Gonzaguinha, Sueli Costa, Joyce Moreno, João Donato, Gilberto Gil, Luiz Melodia, e entre outras feras Walter Franco. Não se pode dizer que seja um disco de sucesso de massa e os tais fãs, aqueles do Pare o Casamento, ficaram por aí, pedindo e insistindo pelas Provas de Fogo da vida. Wanderléa deixou a Polydor.

Artista que se preza não se entrega, rompe barreiras, quebra paradigmas. Na nova gravadora, a Emi-Odeon, Wanderléa reiterou o recado dado no primeiro disco da Polydor ao unir-se a Egberto Gismonti para fazer aquele que é um grande marco musical de sua carreira: Vamos que eu já vou! (1977) E creio ser desse período o imenso prestígio que Wanderléa tem no meio musical. Se já era respeitada pela trajetória juvenil dos sucessos que nunca sairiam da memória dos fãs, é na Polydor e na Emi-Odeon que a cantora deixou claro que seguiria firme no objetivo de ir muito além. Veio Mais que a paixão (1978) com repertório caprichado privilegiando grandes compositores e participações especiais de Djavan, Moraes Moreira e Egberto Gismonti, o autor da canção que dá título ao LP.

Interessadas em maiores vendagens, as gravadoras tentaram impor à Wanderléa uma volta ao jeito Jovem Guarda. Um longo jogo visível em vários dos discos seguintes quando, sem muita razão de ser, entre gravações inéditas colocam “lembranças” com regravações de antigos sucessos. Junte-se a isso muitas coletâneas mesclando as diferentes fases. Enquanto isso a cantora fazia participações em discos de diferentes colegas, além de emplacar vários êxitos em trilhas de novelas. O público da fase juvenil manteve-se fiel, novas gerações passaram a seguir seu trabalho.

Em 2008 Wanderléa lança Nova Estação, pela Lua Music. O disco recoloca a cantora interpretando samba, blues, choro. E, em seguida, em 2013, grava ao vivo no Theatro Municipal de São Paulo o Wanderléa Maravilhosa. Novamente um marco denotando que a partir de então a cantora fará somente o que quiser. Isto inclui, inclusive, um retorno triunfal à Jovem Guarda no Show “60! Década de Arromba. Doc. Musical” (2016). Longa temporada no Rio de Janeiro e em São Paulo, depois percorrendo as principais cidades do país, a Ternurinha fazendo a plateia chorar de emoção ao rever os anos de 1960. Paralelamente, ela lançou Vida de Artista, com todas as faixas compostas por Sueli Costa, um disco suave e emocionante.

Nesta sexta-feira, 27 de maio, Wanderléa esteve no Sesc Santos com seu novo trabalho, onde canta chorinhos clássicos da história da MPB. Acompanhada por um octeto formado por ótimos músicos, a cantora apresentou todas as músicas do cd Wanderléa choros, do selo SESC. Confessando ser um sonho acalentado desde a infância quando ouvia no rádio Ademilde Fonseca, a cantora faz um resgate memorável do ritmo brasileiro esbanjando dicção, ritmo e interpretação, sempre com muita segurança. Os fãs estão presentes e em alguns momentos ouve-se um “canta senhor juiz” e outras canções da Jovem Guarda. Wanderléa encerra o show com Ternura, o primeiro mega sucesso de sua longa carreira. Passeia pela plateia, carinhosa e atenciosa para com quem a ama.

De volta ao palco, aclamada com pedidos de bis, prioriza os chorinhos, é o que quer cantar nesse momento. E a gente fica muito feliz por ela conseguir não ter se dobrado ao que as gravadoras quiseram para ela. O mínimo que podemos desejar aos artistas que amamos: Serem eles mesmos sobre o palco, fazendo e cantando o que bem quiserem.

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Obs. No título, o verso “Amo, respiro e ainda sei cantar” é da música Carne, osso e coração, de Joyce Moreno, incluída no show Wanderléa canta choros.

Renascimento Pânico: estreias mundiais!

Será amanhã, 30 de março, 19h, no Teatro Maria de Lourdes Sekeff do Instituto de Artes da Unesp, o concerto da série T-Son 122, do Studio Panaroma.

Flo Menezes no palco do Teatro Maria de Lourdes Sekeff

O Studio PANaroma de Música Eletroacústica da Unesp foi fundado em 1994 pelo Compositor Flo Menezes e chegou a mais de 100 concertos somente dentro da Unesp! A série de concertos T-Son dá sequência às séries históricas de concertos eletroacústicos levadas ao público desde a fundação do estúdio em julho de 1994 (séries Panorama da Música de Vanguarda e Terceiro Milênio). O T-Son é realizado com o PUTS (PANaroma/Unesp – Teatro Sonoro,
a orquestra de altofalantes do Studio PANaroma).

Com direção musical de Flo Menezes e direção técnica de Vinícius Baldaia, o concerto denominado RENASCIMENTO PÂNICO apresenta estreias mundiais em concertos presenciais:


Danilo Rossetti: Substâncias moldáveis

Gabriel Garcia: (PAN)demônio

Vinicius Baldaia: Prólogo do Renascimento

Flávio Monteiro: Vem e vai – Transcriação e(m) apoteose de Gilberto Mendes

Franciele Lima: Ciclo d’água

György Ligeti: Glissandi

Todos estão convidados!

Serviço:

Teatro SONoro
Série de concertos do Studio PANaroma

Teatro Maria de Lourdes Sekeff (Instituto de Artes da Unesp)
Rua Dr. Bento Teobaldo Ferraz, 271 – Barra Funda – SP
30 de março de 2023, às 19h
Grátis.

Sueli Costa “parte, e vai-se embora”

Penso que bastaria uma canção para colocar alguns artistas no topo junto aos melhores de todo o sempre. Algo como “Coração Ateu”, que garantiu para Sueli Costa lugar cativo no coração de quem ouviu a canção na voz de Maria Bethânia.

Acontece que a carioca Sueli, que se criou em Juiz de Fora, Minas Gerais, fez muito mais: Alma, para Simone; Primeiro Jornal, em parceria com Abel Silva, para Elis Regina e por aí foi, e por aí vai ficar na memória da música brasileira. A notícia da morte de Sueli Costa chegou nessa manhã, por aqui nublada e sombria. Pensei imediatamente no Romanceiro da Inconfidência, em Cecília Meirelles e no Romance XII, ou de Nossa Senhora da Ajuda, que canto sempre pela melodia criada por Sueli. É simples, suave, profundo e triste, muito triste:

Nossa Senhora da Ajuda

Entre os meninos que estão

Rezando aqui na capela

Um vai ser levado à forca

Com baraço e com pregão!

Salvai-o Senhora,

com o vosso poder

Do triste destino

que vai padecer

Pois vai ser levado à forca,

Para morte natural

Esse que não estais ouvindo

Tão contrito de mãos postas

Na capela do Pombal.

Lá vai um menino

Entre seis irmãos

Senhora da Ajuda

Pelo vosso nome,

Estendei-lhe as mãos!

Sueli Costa sintetizou o poema sobre o menino Tiradentes. Maria Bethânia interpretou a canção dramaticamente no show – registrado em disco – A Cena Muda. No meu cantinho fiquei esperando e sonhando com o dia em que a compositora musicasse todo o Romanceiro da Inconfidência. No mesmo show Bethânia emplaca outra “parceria” de Sueli Costa, dessa vez com Fernando Pessoa em “A Sonhar eu venci mundos”. É parar por aqui e correr a ouvir o disco. Antes, quero lembrar outras parcerias, outras canções.

Com o uberabense Cacaso, Sueli Costa compôs “Dentro de mim mora um anjo”, e com Abel Silva criou “Jura Secreta”, que colocou Simone ao lado de todas as maiores cantoras brasileiras:

Só uma palavra me devora
Aquela que o meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que eu não sofri…

Vai-se com Sueli Costa um pouco mais da sofisticação das nossas melodias, da poesia tornada canção pelo talento imensurável da compositora. Aqui concluo essa pequena resenha, homenagem e eterna gratidão por tantos momentos embalados por belíssimas canções autorais e outras, com Tite de Lemos, Paulo César Pinheiro, Capinam, Aldir Blanc, Ana Terra… Fica abaixo um registro da parceria de Sueli com Vitor Martins, na voz de Elis Regina: 20 anos Blue!

Obrigado, Sueli Costa!

A pescaria, para não esquecer

Grande mesmo, ele só conhecia o rio, divisa de Minas Gerais com São Paulo. O trem de passageiros diminuía a velocidade para entrar na ponte que, em tal momento, era fechada ao tráfego de automóveis ou caminhões. O rio imenso, Rio Grande! O menino nunca viu peixes, nem mesmo quando atravessou a ponte caminhando com o pai. Não nadou nem pescou por lá!

Pescar mesmo foi na Lagoa do Taquaral. Em Campinas, no tempo em que só havia o bairro de mesmo nome. Do outro lado do lago era puro mato e muitos eucaliptos. A maior lagoa do mundo para quem não conhecia outras lagoas, o mar. Com a parentada ele aprendeu a colocar isca, jogar a linha e esperar, esperar, esperar…

“…Mas os peixes não querem cooperar

Se eu não pescar nenhum

Com que cara vou ficar…”

Essa prática acontecia nas férias e o menino precisava voltar para Uberaba, para o Alto do Boa Vista que, por tal nome, já se conclui a ausência de lagoas e rios. Lá no alto se ouvia muito rádio e entre tantas vozes havia uma, com história de pescador fajuto, que compra peixe no mercado para ficar bem na fita. As músicas ingênuas, contanto pequenas histórias… Com o pescador fajuto o menino aprendeu a escrever cartas, formato bem definido na canção:

“Escrevo-te estas mal traçadas linhas, meu amor

Porque veio a saudade visitar meu coração…”

Andando com primos e colegas de escola o menino conheceu o estúdio e o auditório da PRE-5, Rádio Sociedade do Triângulo Mineiro. Durante a semana entravam no estúdio e, caladinhos, viam e ouviam os locutores de então atuando nos programas vespertinos. Ficou a lembrança do Cirquinho do Xuxu (Edson Iglesias), Júlio César Jardim (Casquinha) que atuavam com Lídia Varanda. Aos domingos havia o programa com auditório e as crianças cantavam acompanhadas por um regional extraordinário, que acompanhava as crianças em qualquer canção, sem qualquer ensaio.

Xuxu e Lídia chamam o garoto inscrito. A plateia lotada e o menino, sem medo de ser feliz: O que você vai cantar? A Pescaria, responde o garoto.

“E mal o broto me vê passar ouço sempre ela falar

Se ele é um bom pescador, serve pra ser meu amor”.

E assim Erasmo entrou e permanece na minha memória, desde quando aos 10 anos cantei a singela canção em um programa infantil. Já se vão 57 anos!

Consta por aí que os encontros entre geminianos são para todo o sempre, mesmo quando distantes. Erasmo Carlos, Wanderléa, Maria Bethânia, Chico Buarque, Paul McCartney… Só para ficar no campo da música esses exemplos de uma mesma geração de artistas que entraram em minha vida. Todos são geminianos, como eu. Pretensão não custa nada… Sempre me senti feliz por estar na mesma casa astral desse povo e sonhar em ter um pouquinho do talento com o qual presentearam a vida de milhões de pessoas.

Lá longe, nos tempos de A Pescaria, Erasmo foi o cara da Festa de Arromba, registrando toda uma gama de artistas que amávamos e que não esqueceríamos, imortais na canção. Já se mostrava o amigo de Roberto Carlos e Wanderléa, tranquilo e sem qualquer tentativa de concorrência, dono de si e do seu lugar. Mereceu de Roberto uma declaração pública de amizade e fraternidade:

“…cabeça de homem, mas o coração de menino

Aquele que está do meu lado em qualquer caminhada”

Eu já não morava em Uberaba e, trabalhando na mesma Campinas das pescarias de infância, recebi um telefonema que recolocava Erasmo na minha história. Recebi um telefonema de Ronaldo Feliciano de Assis, “O meu amigo Ronaldo!”, me informando que “Roberto Carlos fez uma música sobre nossa amizade”. Amigo!

O Erasmo que eu mais gosto é o de Meu nome é Gal e Cachaça Mecânica. É maravilhoso ver Gal Costa mostrar a indiscutível superioridade vocal cantando uma música de Erasmo e duelando com uma guitarra na célebre interpretação. Em Cachaça Mecânica, Erasmo dialoga com Chico Buarque referenciando Construção, em letra precisa e criativa sobre nossa gente.

Há tantas canções de Erasmo! Sem contar as parcerias com Roberto! Muitas! Todavia, há aquelas que nos acompanham por toda a vida, nos levam ao puro deleite e, quando a vida nos machuca, acompanham nosso sofrimento. O Erasmo de “A pescaria” é doce, como são doces as lembranças de infância. Ronaldinho e meus melhores amigos estão em “Amigo”, como estão Erasmo, Gal Costa, Pablo Milanez, Rolando Boldrin, Lizette Negreiros, entre os seres queridos que acabam de partir. Para todos eles, peço perdão pelo egoísmo e insisto:

“…Onde você estiver, não se esqueça de mim
Quando você se lembrar, não se esqueça que eu
Que eu não consigo apagar você da minha vida
Onde você estiver, não se esqueça de mim”.

——–xxx———

Notas: As canções citadas acima estão nos vídeos, disponíveis abaixo.

A pescaria

A carta

Festa de Arromba

Amigo

Meu nome é Gal

Cachaça Mecânica

Não se esqueça de mim

Acontece!

A dimensão de um artista pode ser medida pelo que é percebido pelo ser humano. Quanto maior e mais diversa essa percepção, maior é o artista. Gal Costa deve estar batendo recordes de adjetivos, de maneiras de percebê-la, frutos de uma carreira que a colocou entre maiores da música popular. E é assim, tentando driblar a tristeza, que teço loas para Gal. E, mal esboço esse parágrafo, chega a notícia de outra perda, Rolando Boldrin. Difícil!

Gal falava, raramente a percebi fazendo declarações. Não é sutil. É algo absolutamente claro e distinto da maioria entre artistas pares. Ao invés de colocar-se em um púlpito, palanque ou palco, Gal deixa registrado em vídeos sua fala aos entrevistadores, cheia de simplicidade, plena de clareza e decisão quanto a um modo de ser e estar na vida. Essa fala, com frequência, vinha carregada de alegria e tranquilidade.

Creio não haver dúvidas de que a cantora sabia sobre si própria: quem era, que posição ocupava no panteão das nossas cantoras. É dessa certeza que a percebo tranquila, cantando com quem quer que fosse: Elis, Bethânia, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Tom Jobim… Tranquila e serena, Gal aguardava cada entrada e, chegando o momento, mostrava quem era. Cantando!

Já escrevi em outros momentos que sinto necessidade de referir a obra, verdadeira forma de imortalizar um artista. Difícil optar por canções representativas do repertório de Gal Costa. Vou citar algumas, minha percepção do quanto Gal foi grande. E desencanada!

Eu te amo, do show e álbum Os Mais Doces Bárbaros. Foi quando percebi que aquela voz era única ao subir aos céus finalizando um “serei pra sempre o seu cantor…”

Mãe da Manhã, do disco O sorriso do gato de Alice, Gal fazendo de sua voz “meu amparo, aro de luz na gruta da dor”.

Estrela, estrela, do disco Fantasia foi, por muito tempo, minha preferida da cantora que brilhava “quase sem querer” por certamente ter aprendido a “Deixar, ser o que se é”.

Há muitas canções nessa vida para ouvir e ouvir e ouvir Gal. E minha geração teve a honra e a benção divina em contar com a voz doce e única que, sabendo-se assim, podia viver com segurança e leveza sobre os palcos. Há exemplos marcantes dessa leveza, lá atrás, quando éramos jovens e a menina Gal se apresentava em um programa da TV Record, cantando Trem das Onze. Tranquila e serena, canta com e para a plateia.

Em outro momento, Gal estava em um programa de tv e sobe arquibancadas, na plateia, cantando junto ao público. Ao descer, escorrega e cai. Levanta-se tranquilamente dizendo “Acontece!” e continua cantando, assim como já o tinha feito com um acidente no violão, registrado no Fa-tal. Simples, tranquila e serena, com uma segurança única que a fazia enfrentar milhares de pessoas munida de voz e violão (a lembrança mais forte na Avenida São João, em São Paulo, em memorável Virada Cultural). Sempre a comparei aos grandes artistas americanos com seus shows mega produzidos afirmando que para Gal, bastava só o microfone e o violão.

Deixei para concluir este texto a canção de Cazuza, Brasil, quando Gal revelou um país que sempre teimamos em ver. Esse Brasil que não mostra a sua cara e que esconde facetas, muitas delas constantemente lembradas por Rolando Boldrin. Com seus casos, suas prosas e canções, o ator e cantor Boldrin deixa uma obra em que o país caboclo, caipira, sertanejo está vivo e dentro de nós. Um país onde “a viola fala alto”, em todos nós, e “toda moda é um remédio para meus desenganos”.

Duas duras perdas. Descansem em paz, Gal Costa, Rolando Boldrin!

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As canções citadas neste post estão disponíveis abaixo.

Acontece:

Eu te amo

Mãe da manhã

Estrela, estrela

Brasil

Vide vida marvada

Trem das onze

Maçã matutina ao desvario: Uma receita

Esta maçã já era!

Linda, suculenta, desejável, cheirosa, apetitosa… e por aí vai. E dá-lhe dentadas. Várias. E toca a mastigar uma, duas, trinta vezes para que a casca seja triturada. O pensamento voa para a primeira vez que vi a Branca de Neve. Não é bom aceitar coisas de estranhos, ensina a história infantil. Maçãs podem estar envenenadas. Com os tais agrotóxicos, quase todas estão envenenadas! Saudade do quintal da minha tia Isaura. Havia uma macieira e ela não usava nada além de água para nos garantir frutas deliciosas.

Branca de Neve vivia com 7 anões (danada!) e após comer a maçã ganhou um príncipe de brinde. Abriram-se as portas do prazer para a mocinha, que seguiu os caminhos de Eva. Dá para imaginar o planeta sem a mordida dada por Eva? Recordo uma cena muda no cinema. Imagens belíssimas, casal bonito andando entre folhas escondendo as partes e, de repente, aparece a serpente. Eva aceita, dá – a maçã – para o Adão e… Vento, calor, frio, dor e prazer. O filme não mostra o casal descobrindo o como se faz indo direto para os filhos. Seriam esses o real castigo divino? “Não diga isso, meu filho”, diria minha mãe, “filhos são bençãos”.

Tenho preguiça de comer maçã. Demora muito e tem um quê de enganar trouxa. A gente para na fruta, não comendo mais nada, cansado de mastigar. Pensa estar saciado, mas não dura muito para que a fome venha, feroz, exigindo “arroz com feijão e um torresmo à milanesa”, para lembrar Adoniran Barbosa e sua música que, certeira e atual, informa a realidade de muitos: “Trouxe ovo frito, trouxe ovo frito” diz o Dito do samba. Certamente não há maçãs de sobremesa nas marmitas desses operários. Também, demorando tanto para mastigar… melhor algo que se coma mais rápido, para logo “puxar a paia” após o almoço.

Os Stollens, cuja receita não vai maçã, e Rita, que faz apfestrudell e outras delícias.

Maçã é fruta cheia de coisas. Quer dizer, uma maçã é só uma maçã. O que estou pensando após o almoço do parágrafo anterior é que torta de laranja é torta de laranja. Já a torta de maçã é apfelstrudell e, segundo consta, a receita vem da Áustria. Rita Della Rocca, minha amiga, faz essas coisas austríacas tipo stollen, que é um panetone austríaco e, segundo o deus google, a receita vem de Dresden. Vou deixar aqui um link para a página do Instagram da Rita que é artista plástica, cenógrafa, professora trabalhando com eco design e cozinha de família.

Último naco da minha maçã que, agora, só existe na foto, na lembrança e temporariamente no meu estômago…

Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais…

Adoro essa canção. É do Raul Seixas em parceria com o Paulo Coelho e, embora duvide da igualdade das maçãs e acreditar firmemente “que além de dois existem mais” espero ainda nesta encarnação poder viver, na real, os versos:

Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro mas eu vou te libertar…

Maçã é uma fruta demorada para se comer. Não é bom para cafés da manhã de quem está em cima da hora para ir ao trabalho. Maçã é bom para Branca de Neve fazer apfelstrudell para a felicidade dos anões mineiros, antes de saírem buscando seus diamantes. Também é uma fruta boa para despertar Adões distraídos. “Venha cá, Adão! Experimente minha maçã!” sem esquecer de um bom preservativo ou outro anticoncepcional… Enfim, maçã é boa para Euzinho, cheio das manhãs preguiçosas, podendo degustar vagarosamente enquanto vou pensando e matutando sobre esse texto que, para finalizar, deseja boas maçãs para todos e envia um beijo especial para Rita, a Della Rocca.

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Notas:

– Torresmo à milanesa, primeira canção citada acima, é de Adoniran Barbosa e Carlinhos Vergueiro. Os autores fizeram uma gravação inesquecível, com participação mais que especial de Clementina de Jesus.

– A maçã, de Raul Seixas e Paulo Coelho foi gravada algumas vezes. Em enquete totalmente pessoal e com participação exclusiva do autor deste blog, a melhor interpretação é a de Ney Matogrosso.

– Visitem o link da Rita Della Rocca e entrem em contato com a artista para encomendas. Super recomendo!