Sueli Costa “parte, e vai-se embora”

Penso que bastaria uma canção para colocar alguns artistas no topo junto aos melhores de todo o sempre. Algo como “Coração Ateu”, que garantiu para Sueli Costa lugar cativo no coração de quem ouviu a canção na voz de Maria Bethânia.

Acontece que a carioca Sueli, que se criou em Juiz de Fora, Minas Gerais, fez muito mais: Alma, para Simone; Primeiro Jornal, em parceria com Abel Silva, para Elis Regina e por aí foi, e por aí vai ficar na memória da música brasileira. A notícia da morte de Sueli Costa chegou nessa manhã, por aqui nublada e sombria. Pensei imediatamente no Romanceiro da Inconfidência, em Cecília Meirelles e no Romance XII, ou de Nossa Senhora da Ajuda, que canto sempre pela melodia criada por Sueli. É simples, suave, profundo e triste, muito triste:

Nossa Senhora da Ajuda

Entre os meninos que estão

Rezando aqui na capela

Um vai ser levado à forca

Com baraço e com pregão!

Salvai-o Senhora,

com o vosso poder

Do triste destino

que vai padecer

Pois vai ser levado à forca,

Para morte natural

Esse que não estais ouvindo

Tão contrito de mãos postas

Na capela do Pombal.

Lá vai um menino

Entre seis irmãos

Senhora da Ajuda

Pelo vosso nome,

Estendei-lhe as mãos!

Sueli Costa sintetizou o poema sobre o menino Tiradentes. Maria Bethânia interpretou a canção dramaticamente no show – registrado em disco – A Cena Muda. No meu cantinho fiquei esperando e sonhando com o dia em que a compositora musicasse todo o Romanceiro da Inconfidência. No mesmo show Bethânia emplaca outra “parceria” de Sueli Costa, dessa vez com Fernando Pessoa em “A Sonhar eu venci mundos”. É parar por aqui e correr a ouvir o disco. Antes, quero lembrar outras parcerias, outras canções.

Com o uberabense Cacaso, Sueli Costa compôs “Dentro de mim mora um anjo”, e com Abel Silva criou “Jura Secreta”, que colocou Simone ao lado de todas as maiores cantoras brasileiras:

Só uma palavra me devora
Aquela que o meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que eu não sofri…

Vai-se com Sueli Costa um pouco mais da sofisticação das nossas melodias, da poesia tornada canção pelo talento imensurável da compositora. Aqui concluo essa pequena resenha, homenagem e eterna gratidão por tantos momentos embalados por belíssimas canções autorais e outras, com Tite de Lemos, Paulo César Pinheiro, Capinam, Aldir Blanc, Ana Terra… Fica abaixo um registro da parceria de Sueli com Vitor Martins, na voz de Elis Regina: 20 anos Blue!

Obrigado, Sueli Costa!

A pescaria, para não esquecer

Grande mesmo, ele só conhecia o rio, divisa de Minas Gerais com São Paulo. O trem de passageiros diminuía a velocidade para entrar na ponte que, em tal momento, era fechada ao tráfego de automóveis ou caminhões. O rio imenso, Rio Grande! O menino nunca viu peixes, nem mesmo quando atravessou a ponte caminhando com o pai. Não nadou nem pescou por lá!

Pescar mesmo foi na Lagoa do Taquaral. Em Campinas, no tempo em que só havia o bairro de mesmo nome. Do outro lado do lago era puro mato e muitos eucaliptos. A maior lagoa do mundo para quem não conhecia outras lagoas, o mar. Com a parentada ele aprendeu a colocar isca, jogar a linha e esperar, esperar, esperar…

“…Mas os peixes não querem cooperar

Se eu não pescar nenhum

Com que cara vou ficar…”

Essa prática acontecia nas férias e o menino precisava voltar para Uberaba, para o Alto do Boa Vista que, por tal nome, já se conclui a ausência de lagoas e rios. Lá no alto se ouvia muito rádio e entre tantas vozes havia uma, com história de pescador fajuto, que compra peixe no mercado para ficar bem na fita. As músicas ingênuas, contanto pequenas histórias… Com o pescador fajuto o menino aprendeu a escrever cartas, formato bem definido na canção:

“Escrevo-te estas mal traçadas linhas, meu amor

Porque veio a saudade visitar meu coração…”

Andando com primos e colegas de escola o menino conheceu o estúdio e o auditório da PRE-5, Rádio Sociedade do Triângulo Mineiro. Durante a semana entravam no estúdio e, caladinhos, viam e ouviam os locutores de então atuando nos programas vespertinos. Ficou a lembrança do Cirquinho do Xuxu (Edson Iglesias), Júlio César Jardim (Casquinha) que atuavam com Lídia Varanda. Aos domingos havia o programa com auditório e as crianças cantavam acompanhadas por um regional extraordinário, que acompanhava as crianças em qualquer canção, sem qualquer ensaio.

Xuxu e Lídia chamam o garoto inscrito. A plateia lotada e o menino, sem medo de ser feliz: O que você vai cantar? A Pescaria, responde o garoto.

“E mal o broto me vê passar ouço sempre ela falar

Se ele é um bom pescador, serve pra ser meu amor”.

E assim Erasmo entrou e permanece na minha memória, desde quando aos 10 anos cantei a singela canção em um programa infantil. Já se vão 57 anos!

Consta por aí que os encontros entre geminianos são para todo o sempre, mesmo quando distantes. Erasmo Carlos, Wanderléa, Maria Bethânia, Chico Buarque, Paul McCartney… Só para ficar no campo da música esses exemplos de uma mesma geração de artistas que entraram em minha vida. Todos são geminianos, como eu. Pretensão não custa nada… Sempre me senti feliz por estar na mesma casa astral desse povo e sonhar em ter um pouquinho do talento com o qual presentearam a vida de milhões de pessoas.

Lá longe, nos tempos de A Pescaria, Erasmo foi o cara da Festa de Arromba, registrando toda uma gama de artistas que amávamos e que não esqueceríamos, imortais na canção. Já se mostrava o amigo de Roberto Carlos e Wanderléa, tranquilo e sem qualquer tentativa de concorrência, dono de si e do seu lugar. Mereceu de Roberto uma declaração pública de amizade e fraternidade:

“…cabeça de homem, mas o coração de menino

Aquele que está do meu lado em qualquer caminhada”

Eu já não morava em Uberaba e, trabalhando na mesma Campinas das pescarias de infância, recebi um telefonema que recolocava Erasmo na minha história. Recebi um telefonema de Ronaldo Feliciano de Assis, “O meu amigo Ronaldo!”, me informando que “Roberto Carlos fez uma música sobre nossa amizade”. Amigo!

O Erasmo que eu mais gosto é o de Meu nome é Gal e Cachaça Mecânica. É maravilhoso ver Gal Costa mostrar a indiscutível superioridade vocal cantando uma música de Erasmo e duelando com uma guitarra na célebre interpretação. Em Cachaça Mecânica, Erasmo dialoga com Chico Buarque referenciando Construção, em letra precisa e criativa sobre nossa gente.

Há tantas canções de Erasmo! Sem contar as parcerias com Roberto! Muitas! Todavia, há aquelas que nos acompanham por toda a vida, nos levam ao puro deleite e, quando a vida nos machuca, acompanham nosso sofrimento. O Erasmo de “A pescaria” é doce, como são doces as lembranças de infância. Ronaldinho e meus melhores amigos estão em “Amigo”, como estão Erasmo, Gal Costa, Pablo Milanez, Rolando Boldrin, Lizette Negreiros, entre os seres queridos que acabam de partir. Para todos eles, peço perdão pelo egoísmo e insisto:

“…Onde você estiver, não se esqueça de mim
Quando você se lembrar, não se esqueça que eu
Que eu não consigo apagar você da minha vida
Onde você estiver, não se esqueça de mim”.

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Notas: As canções citadas acima estão nos vídeos, disponíveis abaixo.

A pescaria

A carta

Festa de Arromba

Amigo

Meu nome é Gal

Cachaça Mecânica

Não se esqueça de mim

Acontece!

A dimensão de um artista pode ser medida pelo que é percebido pelo ser humano. Quanto maior e mais diversa essa percepção, maior é o artista. Gal Costa deve estar batendo recordes de adjetivos, de maneiras de percebê-la, frutos de uma carreira que a colocou entre maiores da música popular. E é assim, tentando driblar a tristeza, que teço loas para Gal. E, mal esboço esse parágrafo, chega a notícia de outra perda, Rolando Boldrin. Difícil!

Gal falava, raramente a percebi fazendo declarações. Não é sutil. É algo absolutamente claro e distinto da maioria entre artistas pares. Ao invés de colocar-se em um púlpito, palanque ou palco, Gal deixa registrado em vídeos sua fala aos entrevistadores, cheia de simplicidade, plena de clareza e decisão quanto a um modo de ser e estar na vida. Essa fala, com frequência, vinha carregada de alegria e tranquilidade.

Creio não haver dúvidas de que a cantora sabia sobre si própria: quem era, que posição ocupava no panteão das nossas cantoras. É dessa certeza que a percebo tranquila, cantando com quem quer que fosse: Elis, Bethânia, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Tom Jobim… Tranquila e serena, Gal aguardava cada entrada e, chegando o momento, mostrava quem era. Cantando!

Já escrevi em outros momentos que sinto necessidade de referir a obra, verdadeira forma de imortalizar um artista. Difícil optar por canções representativas do repertório de Gal Costa. Vou citar algumas, minha percepção do quanto Gal foi grande. E desencanada!

Eu te amo, do show e álbum Os Mais Doces Bárbaros. Foi quando percebi que aquela voz era única ao subir aos céus finalizando um “serei pra sempre o seu cantor…”

Mãe da Manhã, do disco O sorriso do gato de Alice, Gal fazendo de sua voz “meu amparo, aro de luz na gruta da dor”.

Estrela, estrela, do disco Fantasia foi, por muito tempo, minha preferida da cantora que brilhava “quase sem querer” por certamente ter aprendido a “Deixar, ser o que se é”.

Há muitas canções nessa vida para ouvir e ouvir e ouvir Gal. E minha geração teve a honra e a benção divina em contar com a voz doce e única que, sabendo-se assim, podia viver com segurança e leveza sobre os palcos. Há exemplos marcantes dessa leveza, lá atrás, quando éramos jovens e a menina Gal se apresentava em um programa da TV Record, cantando Trem das Onze. Tranquila e serena, canta com e para a plateia.

Em outro momento, Gal estava em um programa de tv e sobe arquibancadas, na plateia, cantando junto ao público. Ao descer, escorrega e cai. Levanta-se tranquilamente dizendo “Acontece!” e continua cantando, assim como já o tinha feito com um acidente no violão, registrado no Fa-tal. Simples, tranquila e serena, com uma segurança única que a fazia enfrentar milhares de pessoas munida de voz e violão (a lembrança mais forte na Avenida São João, em São Paulo, em memorável Virada Cultural). Sempre a comparei aos grandes artistas americanos com seus shows mega produzidos afirmando que para Gal, bastava só o microfone e o violão.

Deixei para concluir este texto a canção de Cazuza, Brasil, quando Gal revelou um país que sempre teimamos em ver. Esse Brasil que não mostra a sua cara e que esconde facetas, muitas delas constantemente lembradas por Rolando Boldrin. Com seus casos, suas prosas e canções, o ator e cantor Boldrin deixa uma obra em que o país caboclo, caipira, sertanejo está vivo e dentro de nós. Um país onde “a viola fala alto”, em todos nós, e “toda moda é um remédio para meus desenganos”.

Duas duras perdas. Descansem em paz, Gal Costa, Rolando Boldrin!

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As canções citadas neste post estão disponíveis abaixo.

Acontece:

Eu te amo

Mãe da manhã

Estrela, estrela

Brasil

Vide vida marvada

Trem das onze

Maçã matutina ao desvario: Uma receita

Esta maçã já era!

Linda, suculenta, desejável, cheirosa, apetitosa… e por aí vai. E dá-lhe dentadas. Várias. E toca a mastigar uma, duas, trinta vezes para que a casca seja triturada. O pensamento voa para a primeira vez que vi a Branca de Neve. Não é bom aceitar coisas de estranhos, ensina a história infantil. Maçãs podem estar envenenadas. Com os tais agrotóxicos, quase todas estão envenenadas! Saudade do quintal da minha tia Isaura. Havia uma macieira e ela não usava nada além de água para nos garantir frutas deliciosas.

Branca de Neve vivia com 7 anões (danada!) e após comer a maçã ganhou um príncipe de brinde. Abriram-se as portas do prazer para a mocinha, que seguiu os caminhos de Eva. Dá para imaginar o planeta sem a mordida dada por Eva? Recordo uma cena muda no cinema. Imagens belíssimas, casal bonito andando entre folhas escondendo as partes e, de repente, aparece a serpente. Eva aceita, dá – a maçã – para o Adão e… Vento, calor, frio, dor e prazer. O filme não mostra o casal descobrindo o como se faz indo direto para os filhos. Seriam esses o real castigo divino? “Não diga isso, meu filho”, diria minha mãe, “filhos são bençãos”.

Tenho preguiça de comer maçã. Demora muito e tem um quê de enganar trouxa. A gente para na fruta, não comendo mais nada, cansado de mastigar. Pensa estar saciado, mas não dura muito para que a fome venha, feroz, exigindo “arroz com feijão e um torresmo à milanesa”, para lembrar Adoniran Barbosa e sua música que, certeira e atual, informa a realidade de muitos: “Trouxe ovo frito, trouxe ovo frito” diz o Dito do samba. Certamente não há maçãs de sobremesa nas marmitas desses operários. Também, demorando tanto para mastigar… melhor algo que se coma mais rápido, para logo “puxar a paia” após o almoço.

Os Stollens, cuja receita não vai maçã, e Rita, que faz apfestrudell e outras delícias.

Maçã é fruta cheia de coisas. Quer dizer, uma maçã é só uma maçã. O que estou pensando após o almoço do parágrafo anterior é que torta de laranja é torta de laranja. Já a torta de maçã é apfelstrudell e, segundo consta, a receita vem da Áustria. Rita Della Rocca, minha amiga, faz essas coisas austríacas tipo stollen, que é um panetone austríaco e, segundo o deus google, a receita vem de Dresden. Vou deixar aqui um link para a página do Instagram da Rita que é artista plástica, cenógrafa, professora trabalhando com eco design e cozinha de família.

Último naco da minha maçã que, agora, só existe na foto, na lembrança e temporariamente no meu estômago…

Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais…

Adoro essa canção. É do Raul Seixas em parceria com o Paulo Coelho e, embora duvide da igualdade das maçãs e acreditar firmemente “que além de dois existem mais” espero ainda nesta encarnação poder viver, na real, os versos:

Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro mas eu vou te libertar…

Maçã é uma fruta demorada para se comer. Não é bom para cafés da manhã de quem está em cima da hora para ir ao trabalho. Maçã é bom para Branca de Neve fazer apfelstrudell para a felicidade dos anões mineiros, antes de saírem buscando seus diamantes. Também é uma fruta boa para despertar Adões distraídos. “Venha cá, Adão! Experimente minha maçã!” sem esquecer de um bom preservativo ou outro anticoncepcional… Enfim, maçã é boa para Euzinho, cheio das manhãs preguiçosas, podendo degustar vagarosamente enquanto vou pensando e matutando sobre esse texto que, para finalizar, deseja boas maçãs para todos e envia um beijo especial para Rita, a Della Rocca.

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Notas:

– Torresmo à milanesa, primeira canção citada acima, é de Adoniran Barbosa e Carlinhos Vergueiro. Os autores fizeram uma gravação inesquecível, com participação mais que especial de Clementina de Jesus.

– A maçã, de Raul Seixas e Paulo Coelho foi gravada algumas vezes. Em enquete totalmente pessoal e com participação exclusiva do autor deste blog, a melhor interpretação é a de Ney Matogrosso.

– Visitem o link da Rita Della Rocca e entrem em contato com a artista para encomendas. Super recomendo!

Língua brasileira! Tom Zé no Mirada

Língua Brasileira: Foto:_Matheus-Jose-Maria

Neste domingo vai ser um final e tanto do Mirada, o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc Santos. Iniciado no dia 9 tenho indicado e comentado sobre o que consegui acompanhar. Montagem do Coletivo Ultralíricos com canções inéditas de Tom Zé, Língua Brasileira parte da canção homônima do disco Imprensa Cantada, lançado em 2003:

Quando me sorris
Visigoda e celta
Dama culta e bela
Língua de Aviz…

Tom Zé, aos 85 anos, continua instigante e um dos mais criativos compositores brasileiros. Sobre a velhice e a montagem, o compositor disse: “tem algumas coisas que vão se diluindo, mas na paixão que eu tomei por essa peça, eu virei criança outra vez!”.

“Seis atuantes e quatro músicos dão a ver e ouvir a epopeia dos povos que formaram o português falado no Brasil, seus mitos e cosmogonias, passando pelas remotas origens ibéricas, por romanos, bárbaros e árabes, pela África e a América Nativa.

A montagem passeia pelo inconsciente de nossa língua, suas graças e tragédias, seu “esplendor e sepultura”, paradoxo presente em verso do poema de Olavo Bilac (1865-1918) que leva o mesmo nome do espetáculo”.

O Mirada trouxe 36 obras de 13 países, sendo Portugal o país homenageado pelo evento. Nada melhor do que ver, entre os trabalhos deste domingo, dia 18, Língua Brasileira, trabalho que reflete sobre o “esplendor e sepultura” da nossa língua considerando – conforme o diretor Felipe Hirsch: “quase 200 línguas em extinção, sendo mais de uma dúzia delas faladas por pouca gente; três, quatro pessoas originárias. “E, no entanto, o Brasil está aprendendo a entender um pouco disso, do esplendor da mistura dessa língua, e da sepultura. Essa perpetuação da escravidão, o extermínio de povos nativos indígenas, e várias línguas consumidas por isso”, diz, situando que não se trata de peça didática, tampouco de tese, mas poética”.

Com ingressos esgotados desde o anúncio e abertura de venda dos ingressos, fica registrado aqui para a direção do Festival para que, na próxima edição, tenha mobilidade e reserva de verba e espaço para ampliar o número de apresentações dos espetáculos oferecidos. Vários dos trabalhos não consegui ingressos, o que, felizmente, não aconteceu com Língua Brasileira.

Ficha técnica da montagem

Língua Brasileira. Foto:_Matheus-Jose-Maria

Uma peça dos Ultralíricos e Tom Zé
Direção geral Felipe Hirsch
Música e letras Tom Zé
Elenco Amanda Lyra, Danilo Grangheia (Gui Calzavara), Georgette Fadel, Josi Lopes, Pascoal da Conceição e Rodrigo Bolzan
Direção musical Maria Beraldo
Músicos Biel Basile, Fernando Sagawa, Ivan Gomes e Luiza Brina
Músicos (em alternância) Gustavo Sato, Cuca Ferreira, Gabriel Basile e Daniel Conceição
Diretora assistente Juuar
Dramaturgia Ultralíricos, Felipe Hirsch, Juuar e Vinícius Calderoni
Dramaturgista/consultor geral Caetano Galindo
Direção de arte Daniela Thomas e Felipe Tassara
Iluminação Beto Bruel
Figurino Cássio Brasil
Design de som Tocko Michelazzo
Preparação vocal Yantó
Design de vídeo Henrique Martins
Difusão internacional Ricardo Frayha
Direção de produção Luís Henrique Luque Daltrozo

Estou a ver navios

Não sei de onde vem o fascínio pelo ir e vir de navios que, nesse momento da vida, tenho observado entrando ou saindo pelo canal marítimo que liga o oceano ao porto de Santos. Talvez da infância quando, em dias de muita chuva e enxurradas, meu irmão Valdonei e eu fazíamos barquinhos de papel que, invariavelmente, não chegavam até a esquina mais próxima. Afundavam! Buscávamos papel mais resistente e, às vezes, até conseguíamos um que fosse impermeável.

Ver barquinhos descer rua abaixo em corredeiras pluviais e imaginar até onde chegariam era um exercício de fantasia. Não havia bueiros no bairro e sabíamos que parte da enxurrada descia por toda a extensão da avenida enquanto a outra, pela Rua João Pinheiro, tomava rumo ao centro da cidade. Barquinhos mais resistentes chegavam no ponto onde a enxurrada se dividia e era esse o limite até onde ia meu irmão, acompanhando as canoinhas que, pura imaginação, eram barcos, grandes navios.

Lá pelas tantas, na adolescência, tive ideia de que não seria bom ficar estacionado, vendo barcos e vida a passar. Uma das minhas canções preferidas de então termina com versos cantados magistralmente por Maria Bethânia:

Não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não

Lamentando o eterno movimento

Movimento dos barcos, movimento!

A mesma canção, de Capinam e Jards Macalé, também diz:

Não quero ficar dando adeus às coisas passando

Eu quero é passar com elas…

Quantas vezes ouvi Movimento dos Barcos? Não sei! O que sei é que a ideia de estacionar era apavorante tanto quanto a possibilidade de perder algo que a vida pudesse me propiciar. “Eu quero é passar com elas”, pensava enquanto exercia atividades teatrais, educativas, jornalísticas, religiosas, literárias… Um turbilhão de coisas invariavelmente feitas simultaneamente que me levaram a pensar que não sabia, não conseguia meditar.

Voltas que o mundo dá. Mineiro de Minas Gerais, que não sabe nadar nem brincar em piscina de criança, me vejo sentado em diversos pontos do imenso e belo jardim da orla santista, completamente absorto, fascinado pelo eterno movimento das ondas que chegam e se desmancham na areia. Vejo respeitosamente a imensidão que me apequena. Eita, marzão grande, sô! Evito pensar no que ele esconde e nada do que possa estar ali à espreita me assusta, posto que é o mesmo respeito que me mantém distante, mal molhando os pés.

O mar tem me permitido altos níveis de alheamento. Sei lá para onde vão os pensamentos, os desejos, as vontades, os anseios. Tudo se resume a entrar em sintonia com o movimento das águas, no ritmo de ondas às vezes altas, outras meros marulhos. Perco o olhar no infinito, onde mar e céu se encontram e mantenho contato com a realidade a cada navio que passa. Como se cada embarcação me perguntasse de onde vim, para onde vou, o que eu quero. E eu quero é continuar a olhar o mar, a ver navios.

Lá atrás, trabalhando para a gente do Pará e do Maranhão, homenageei Luís da Câmara Cascudo em personagem que chamei “Cascudinho”, nome que me vem quando penso no estudioso brasileiro. Foi Cascudinho, li na coluna Sobre Palavras, do Sérgio Rodrigues, que dá duas versões para a expressão a ver navios. Uma diz de um rico dono de navios que desafiou Deus e este teria dado uma lição no sujeito naufragando as embarcações. Outra, refere crença na volta de D. Sebastião, o rei português que morreu em batalha.

Humildemente sugiro ressignificar a velha expressão “Ficar a ver navios”. Passa a ser um processo de meditação para iniciantes onde o sujeito entra em estado de contemplação observando o oceano. Devidamente acomodado de frente para o mar, sob sombra ou sol, conforme a temperatura pedir. E como o pensamento teima em funcionar, tirar do alheamento, deixe-se levar pelo ir e vir das grandes embarcações.

Outro dia veio uma com o nome Grimaldi. Deve ser da família de Mônaco; Amauri é o nome do meu novo amigo, que me ensina coisas do mar: aquelas que se parecem com grande caixa, acho feias, carregam grãos. Todas têm uma linha que determina para o observador se estão vazias ou carregadas. Aquelas cheias de grandes contêineres me lembram lego. Para logo chegará um grande navio da China. Tiveram que alargar o canal quando veio pela primeira vez…

Passatempo bom, ver navios. Não tenho o menor interesse em saber para onde vão, de onde vieram. Apenas desejo que façam boa viagem e, quando chegando, que não tragam nada de mal.

Quanto tempo vou levar para dar um jeito de me “empoleirar” em um desses “trens grandes”, rumo a não sei onde?

Ficar a ver navios é bom. Recomendo.

Contingências Antropofágicas – CCBB Brasília

Celebrando o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o ciclo de três debates discute aspectos históricos, estéticos e humanos do movimento modernista e também questiona as influências dessa primeira etapa do modernismo na arte hoje, jogando luz sobre os significados de uma busca pela identidade brasileira através da arte. Como a questão da brasilidade toma corpo agora?

Os debates são presenciais, gratuitos, com tradução em libras e certificado digital para quem comparecer a pelo menos duas palestras!

Programação:

Quinta, 5 de maio, 19h30

Contingências sócio-históricas: O significado da semana

Maria Eugenia Boaventura – O Salão e a Selva

Regina Teixeira de Barros – Mulheres modernistas

Sexta, 6 de maio, 19h30

Contingências estéticas: A composição da sinfonia modernista de 22

Guilherme Wisnik – Só me interessa o que não é meu

Agnaldo Farias – O lastro modernista nas artes hoje

Sábado, 7 de maio, 19h30

Contingências humanas: O significado de ser moderno hoje

Fred Coelho – Invenções e Reinvenções do Modernismo

Luisa Duarte – Adriana Varejão: Só me interessa o que não é meu, uma atualização crítica.

🎟️ Os ingressos serão liberados no dia de cada debate, na bilheteria do CCBB Brasília. Acesse bb.com.br/cultura o