Acontece!

A dimensão de um artista pode ser medida pelo que é percebido pelo ser humano. Quanto maior e mais diversa essa percepção, maior é o artista. Gal Costa deve estar batendo recordes de adjetivos, de maneiras de percebê-la, frutos de uma carreira que a colocou entre maiores da música popular. E é assim, tentando driblar a tristeza, que teço loas para Gal. E, mal esboço esse parágrafo, chega a notícia de outra perda, Rolando Boldrin. Difícil!

Gal falava, raramente a percebi fazendo declarações. Não é sutil. É algo absolutamente claro e distinto da maioria entre artistas pares. Ao invés de colocar-se em um púlpito, palanque ou palco, Gal deixa registrado em vídeos sua fala aos entrevistadores, cheia de simplicidade, plena de clareza e decisão quanto a um modo de ser e estar na vida. Essa fala, com frequência, vinha carregada de alegria e tranquilidade.

Creio não haver dúvidas de que a cantora sabia sobre si própria: quem era, que posição ocupava no panteão das nossas cantoras. É dessa certeza que a percebo tranquila, cantando com quem quer que fosse: Elis, Bethânia, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Tom Jobim… Tranquila e serena, Gal aguardava cada entrada e, chegando o momento, mostrava quem era. Cantando!

Já escrevi em outros momentos que sinto necessidade de referir a obra, verdadeira forma de imortalizar um artista. Difícil optar por canções representativas do repertório de Gal Costa. Vou citar algumas, minha percepção do quanto Gal foi grande. E desencanada!

Eu te amo, do show e álbum Os Mais Doces Bárbaros. Foi quando percebi que aquela voz era única ao subir aos céus finalizando um “serei pra sempre o seu cantor…”

Mãe da Manhã, do disco O sorriso do gato de Alice, Gal fazendo de sua voz “meu amparo, aro de luz na gruta da dor”.

Estrela, estrela, do disco Fantasia foi, por muito tempo, minha preferida da cantora que brilhava “quase sem querer” por certamente ter aprendido a “Deixar, ser o que se é”.

Há muitas canções nessa vida para ouvir e ouvir e ouvir Gal. E minha geração teve a honra e a benção divina em contar com a voz doce e única que, sabendo-se assim, podia viver com segurança e leveza sobre os palcos. Há exemplos marcantes dessa leveza, lá atrás, quando éramos jovens e a menina Gal se apresentava em um programa da TV Record, cantando Trem das Onze. Tranquila e serena, canta com e para a plateia.

Em outro momento, Gal estava em um programa de tv e sobe arquibancadas, na plateia, cantando junto ao público. Ao descer, escorrega e cai. Levanta-se tranquilamente dizendo “Acontece!” e continua cantando, assim como já o tinha feito com um acidente no violão, registrado no Fa-tal. Simples, tranquila e serena, com uma segurança única que a fazia enfrentar milhares de pessoas munida de voz e violão (a lembrança mais forte na Avenida São João, em São Paulo, em memorável Virada Cultural). Sempre a comparei aos grandes artistas americanos com seus shows mega produzidos afirmando que para Gal, bastava só o microfone e o violão.

Deixei para concluir este texto a canção de Cazuza, Brasil, quando Gal revelou um país que sempre teimamos em ver. Esse Brasil que não mostra a sua cara e que esconde facetas, muitas delas constantemente lembradas por Rolando Boldrin. Com seus casos, suas prosas e canções, o ator e cantor Boldrin deixa uma obra em que o país caboclo, caipira, sertanejo está vivo e dentro de nós. Um país onde “a viola fala alto”, em todos nós, e “toda moda é um remédio para meus desenganos”.

Duas duras perdas. Descansem em paz, Gal Costa, Rolando Boldrin!

,-,-,-,-,-,-,-,-,

As canções citadas neste post estão disponíveis abaixo.

Acontece:

Eu te amo

Mãe da manhã

Estrela, estrela

Brasil

Vide vida marvada

Trem das onze

Elza, para ouvir!

Eu gostaria de morrer em casa, de causas naturais, como Elza Soares. Entre paredes conhecidas, sem a frieza do quarto hospitalar, perto de pessoas da família, com lucidez e visão para identificar quem vier me buscar. Espero merecer tal graça. Quanto à Elza, fui alertado por Flávio Monteiro: “- Merecido. Ela sofreu antes, ao longo da vida, tudo o que tinha que sofrer!” Realmente, não carecia de mais nenhuma dor.

Morte, certeza que costumamos recusar, nos pega de surpresa, nos deixa meio sem rumo. E a gente toca a pensar em quem faleceu. Incomoda um pouco ler tanto sobre Elza Soares sem que citem suas canções, interpretações. Penso que a melhor homenagem é ouvi-la e, por isso, resolvi indicar sugestões de fã.

Gosto de “Boato”, música de João Roberto Kelly, na voz de Elza Soares, gravado em 1960. No final do samba Elza repete o refrão imitando Dalva de Oliveira, Miltinho e Alaíde Costa. Um absurdo potencial de quem fazia o que bem queria com a voz. Tá bom para começar?

Em raros registros – 3 cds – feitos graças ao trabalho de Zuza Homem de Mello, estão gravações de Elza ao vivo, nos anos de 1960. Dois desses momentos no programa Fino da Bossa (Elis Regina e Jair Rodrigues) e um no Corte Rayol Show (Renato Corte Real e Agnaldo Rayol). Quem não ouviu Elza Soares e Elis Regina cantando “Devagar com a louça” (Haroldo Barbosa e Luis Reis) fica nessa mania de “melhor” que citei em post passado. Bobagem! As duas são melhores. Elas cantam como se tivessem ensaiado durante meses, como se formassem dupla com anos de experiência e dão aula de senso rítmico, divisão ímpar. Essa gravação simplesmente precisa ser ouvida:

Na real, voltando por onde poderia ter iniciado, comecei a gostar de samba enredo ouvindo Elza e, na hierarquia dos afetos, minha primeira citação /indicação vai para “Bahia de Todos os Deuses” (Salgueiro, 1969).

“Nega baiana, tabuleiro de quindim

Todo dia ela está na Igreja do Bonfim

Na ladeira tem, tem capoeira…”

Outra referência afetiva é de “Lendas do Abaeté” (Mangueira, 1973) e, inesquecível, “A Festa do Divino” (Mocidade Independente de Padre Miguel, 1974), esse é samba de quando a cantora foi intérprete da Escola na avenida. Atenção, por favor: no quesito samba enredo, Elza Soares sempre manifestando sua predileção pela Mocidade, não deixou de cantar sambas de outras escolas. Música boa é para ser cantada, de preferência, por quem sabe.

Começo dos anos de 1980, no Instituto de Artes da Unesp, Dirce Ceribelli utilizava canções de Caetano Veloso para nos ensinar Jakobson. Entre essas, “Língua”, que o compositor divide interpretação com Elza Soares em momento icônico. E logo depois tive a oportunidade de vê-la, no Centro Cultural Vergueiro. Mulher bonita, gostosa, com pernas colossais, por aqui e ali diziam ser a Tina Turner brasileira. Mania infeliz essa nossa. Tina é ótima, mas Elza não carece de comparações. Foram tempos de mudança, em que Elza, sem deixar o samba, deu ênfase para todo o seu potencial musical.

“Dura na Queda” (Chico Buarque), “A carne” (Marcelo Yuka, Seu Jorge, Wilson Cappellette), “Rio de Janeiro” (Anderson Lugão), “Flores Horizontais” (Zé Miguel Wisnik, Oswald de Andrade)… eleger uma canção é difícil, pois cada uma dessas vai além do universo musical. Elza, definitivamente, assumia seu lugar como voz de um povo, de uma raça, de um gênero, características que acabaram levando-a para o plural, tornando-se cantora de povos, raças, gêneros.

“Flores horizontais

Flores da vida

Flores brancas de papel

Da vida rubra de bordel…”

Quero concluir essas breves indicações do repertório de Elza sugerindo audição de outros duetos além de Língua (todo mundo, me parece, quis cantar com ela). Chico Buarque (Façamos – Cole Porter, versão de Carlos Rennó), Letícia Sabatella (A Cigarra – Elza e Letícia), Luiz Melodia (Fadas – Luiz Melodia) … Mas, entre tantas parcerias, volto no tempo, lá para os anos de 1960 para indicar um trio: Elza, Elis e Jair cantando “Se acaso você chegasse” (F.Martins, Lupicínio de Oliveira), na mesma coletânea citada acima. É ouvir os três e lamentar imensas perdas, três figuras máximas da nossa música.

Certamente deixei alguma grande interpretação. Fatal deixar de lado vários, entre tantos momentos intensos de puro talento de Elza Soares. Espero que este texto estimule a ouvir e ir bem mais além. A cantora está na nossa música e sua história – vasta e forte – permanecerá.

Ave, Elza Soares!

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

Nota: Todas as canções estão nas plataformas digitais.-

Muitas Chiquinhas para o Brasil!

Chiquinha Gonzaga, com 29 anos (divulgação)

Começar 2022, buscar novas possibilidades, trilhar outros caminhos, abrir alas… “Ó, abre alas que eu quero passar”. A ideia comum do ano enquanto criança entrando mundo afora, um planetinha danado de complicado para qualquer adulto e o 2022, engatinhando, carece de enfrentar presságios, previsões, profecias. A maioria dessas é um papo de otário, disse Caetano Veloso… “Ó, abre alas que eu quero passar”!

Da marchinha e do réveillon divaguei para a autora, Chiquinha Gonzaga, que conheci primeiramente via teatro, com Regina Braga fazendo a própria. Compositora, pianista, maestrina, Chiquinha Gonzaga foi uma mulher porreta e, certamente, sofreu muito por conta do caminho que resolveu traçar. Atualíssima, essa Chiquinha.

Vamos brincar de faz de conta e transitar com Francisca Hedwiges de Lima Neves Gonzaga por esse 2022. O nome é pomposo e digno de dicionário. Ops! No Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, Dona Francisca encontraria motivos para uma boa luta. A publicação informa que ela é “filha da mulata e mãe solteira Rosa Maria de Lima”. Como assim, “mulata”, “mãe solteira”? Tome tento, Sr. Cravo Albin!

O pai reconheceu a filha, colocou a menina para estudar piano e a obrigou a se casar aos 16 anos com um sujeito mais velho… Quantas mulheres ainda nessas condições, casando-se por decisão da família? Quando a jovem Chiquinha deu fim no casório foi deserdada, impedida de ver os filhos menores, dada como morta para esses e, mais, foi proibida de ver a própria mãe.

Chiquinha passou a dar aulas de música. Professoras, sabemos bem, carecem de trabalhar muito para garantir sobrevivência. Atenção, estamos falando do século XIX! Um bom número delas arranjam outras formas de ampliar ganhos. E foi assim que o teatro entrou na vida da compositora, que já tocava em bailes e festas.

Teresa Cristina, em suas lives, a cantora diz sempre do machismo nas escolas de samba, dificultando a vida de compositoras. Chiquinha, que chegou a comprar a alforria de um escravizado, lutando bravamente pela abolição da escravatura e pelo advento da República, estaria liderando alguma boa luta por aqui. Mais outra batalha, dessa vez por direitos trabalhistas: foi uma das fundadoras da SBAT, a Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais.

Chiquinha Gonzaga com 78 anos

Dos fatos mais interessantes sobre Chiquinha Gonzaga é sua busca pelo amor. Provavelmente também pelo prazer (não me venham apenas com o amorzinho romântico do tipo Augusto e Carolina, casal do “A Moreninha”). Ainda hoje metem bronca em mulheres que assumem relacionamentos com homens mais novos. Imaginem Dona Chiquinha, com 52 anos, apaixonada por um gajo de 16? Foram felizes! O rapaz permaneceu ao lado da compositora até quando, aos 87 anos, ela faleceu.

Bom pensar em Chiquinha Gonzaga como personagem para começar um novo ano. Libertária, sem preconceitos, engajada, emponderada, politizada, uma artista na melhor acepção da palavra.

Entre as primeiras notícias de 2022, li sobre um feminicídio em São Vicente (mais um!) e sobre um tal “quaquá” (Imbecil!) dizendo ser Dilma Rousseff irrelevante na política brasileira. O Brasil não mudou quase nada e, por isso, precisamos de milhares, milhões de Chiquinhas para melhorar o ano, o país, a vida, os homens.

Salve, Chiquinha Gonzaga!

Fonte das imagens: https://chiquinhagonzaga.com/wp/

Para Uberaba, aqui de longe

Sei que ainda vou voltar… onde hei de ouvi cantar uma sabiá (Chico Buarque, Tom Jobim)

Um ano sem ir a Uberaba (maldita pandemia!). Toca a viver de lembranças…

E eu sinto uma saudade insana da estrada, da sensação de voltar, chegar na cidade onde nasci.

As primeiras saídas, tentativas de mudança foram confusas. Era um querer vir, não querendo, diria a personagem popular. Era comum viajar chorando, o rosto escondido, olhando a noite pela janela do ônibus. A juventude garantia ânimo e força para voltar na semana seguinte. Era o ir e vir constante, gerando sextas-feiras de ansiedade, segundas-feiras de cansaço.

São Paulo e a vida, aos poucos, exigindo outras posturas. E de uma vez por semana, passei a visitar a cidade uma vez por mês. Não contabilizei o tempo. Mas o trabalho foi exigindo e, aos poucos, a vida mudando… Uberaba passou a tomar todos os feriados.

Tempo, tempo, tempo… E chegou o período de ir só nas férias, em aniversários especiais, visitas a doentes. Nunca mais que quatro meses sem visitar a cidade. Não pensava, nunca cogitei de ficar distante um ano inteirinho.

201 anos! O ano que não vi. Um ano!

Ano passado era pra ter sido uma festa enorme, a gente comemorando o bicentenário da cidade com lançamento do Uberaba 200 anos – No Coração do Brasil, “Euzinho” lá, entre os poetas da cidade no livro organizado por Martha Zednik de Casanova.

Foi o que tinha de ser.

Hoje acordei após sonhos. Nesses, estava lá, como em muitos outros. Esta quarentena infinda não manda nos meus sonhos. E o bom de sonhar é que o tempo não conta. Vejo meu quintal como há muito não é mais, com goiabeira, laranjeira, mamoeiro, jabuticabeira… Sonho com o quarto que dividi com meu irmão e que, após ele se mudar para Brasília, pintei todos os móveis de preto, para desalento da família (Eu era dark e não sabia!). Sonhos… Minha cidade dentro dos meus sonhos.

Uberaba! Tá na hora de pedir versos emprestados a Caetano Veloso:

“por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria…”

A pandemia ainda está aqui, aí, em todo o Brasil. O que deveria ser festa pede apreensão, cuidado dobrado. Recebo notícias de minhas irmãs, trancadas sem que sejam Carmelitas, Concepcionistas. Não vão ao Carmelo, à Medalha Milagrosa. Não vão a lugar nenhum. E, daqui, reitero: Não saiam! Tomem cuidado! A vacina taí!

“por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria…”

Por mais que vivamos tempos sombrios, ninguém vai nos tirar os sonhos, os desejos. Por isso lá vai meu desejo maior neste 02 de março:

Feliz aniversário, Uberaba! Que todos tenham saúde!

Que todos os doentes se curem! Que todos sejam vacinados.

Que possamos estar juntos novamente, presencialmente!

Feliz aniversário, Uberaba!

Histórias fora da live

Angélica Leutwiller

Uma coisa é fazer live com quem tenho pouca ou nenhuma intimidade. Outra coisa é fazer o mesmo tempo numa live com uma amiga como Angélica Leutwiller. Se no primeiro caso cabe elaborar uma pauta com temas, comentários e perguntas pertinentes, no segundo a tarefa é outra: selecionar assuntos e situações que permearam nossas vidas em algumas décadas… Décadas! (E a gente dá a primeira gargalhada, pois a palavra década implica tanta coisa que o melhor é rir).

Importa no Trem das Lives contar a carreira da pessoa, o histórico do profissional. De preferência evidenciar aspectos não divulgados e retomar, rever a trajetória dos nossos convidados. Quando não conhecemos… a gente levanta esse histórico. Já com amigos como Angélica Leutwiller é necessário escolher entre muitos fatos ocorridos ao longo de nossas vidas.

Nos conhecemos na Universidade. Fizemos parte de um grupo que tomou posse do Instituto de Artes para reivindicar alguns direitos. Após alguns dias de invasão, fomos tirados do Campus por uma tropa de choque. Sob aplausos!

Estreitamos amizade fazendo teatro e aí… Angélica visitou Uberaba e conheceu minha família. Em Ribeirão Preto visitou minha tia Olinda em uma festa de Santo Antônio. Estivemos em Campinas, quando nossa querida Heloísa Junqueira cantou na ópera A Flauta Mágica. Fomos para apresentações do coral no Rio de Janeiro… A gente andou por aí.

Em 1983 Caetano Veloso gravou Eclipse Oculto. Angélica adorava a música e sempre a pedia em todas as comemorações. Não foi essa a música que, tempos depois, dançamos com Regina Duarte na comemoração das 100 apresentações da peça A Vida é Sonho. Angélica fez parte do espetáculo e, na festa que já não me recordo onde foi, lá estava o trio Angélica, Heloisa e eu saracoteando pelo salão. Lá pelas tantas, D. Regina desceu do pedestal de onde observava a galera e veio caminhando em direção ao trio, passando a dançar conosco, o quarteto cercado por um monte de seguranças… (Outras gargalhadas e, ao mesmo tempo pensar essa coisa estranha que é a vida de certas pessoas tendo que dançar vigiadas por armários duros e mal-encarados).

Sorte de quem viveu os anos de 1980. Ainda com as boas vibrações dos desbundes dos anos de 1970 e antevendo novos tempos, já que a ditadura militar estava chegando ao fim. Nem tudo era festa. Rolou o primeiro surto de dengue. Uma noite de febre intensa, náuseas, vômitos e um pedido de socorro para a amiga. Angélica me levou ao médico e depois pra casa dos pais, onde me fez um mingau. Coisas de amiga/irmã.

Tenebroso foi quando minha família perdeu seis pessoas em um acidente de carro. Eu não tinha telefone e entraram em contato com Angélica, para que me desse o triste recado. Certamente um momento delicado e embaraçoso, posto que ela não conhecia as pessoas. Ela teve a delicadeza e o cuidado de anotar os nomes dos falecidos. Bizarro! Angélica sentada ao meu lado, pedindo-me calma e após o baque da notícia do acidente ler pausadamente a relação dos mortos.

Tenho tido muita sorte na vida. Longe da família encontrei amigos que cuidaram de mim com carinho e desvelo. E com arte também! Tive períodos de depressão e fui levado para um tratamento com música e cromoterapia. Angélica, junto a um grupo de cantoras incríveis que entoavam mantras enquanto eu, deitado em uma maca, recebia luzes de cores diversas; ouvia e me curava. Sorry! Ficar deprimido e ter Angélica Leutwiller cantando pra levantar o astral é pra encher o peito e, literalmente, “me achar!”

Domingo, no Trem das Lives, estarei todo pimpão e babão recebendo minha amiga. Lá falaremos sobre diversos momentos da carreira dessa artista de primeiríssima linha. Aqui, fica registrado um pouco do imenso carinho que tenho por ela e de alguns fatos que marcaram nossas vidas. Apareçam! Vale a pena conhecer Angélica Leutwiller.

Todos estão convidados!

God save the queen!

Qual o motivo de implicarem com a idade da Rainha Elizabeth II? Estão querendo que ela morra? O problema é a idade da soberana inglesa, 94 anos, ou a idade média do brasileiro ser de apenas 76,7 (IBGE) de vida? Não seria o ideal que todas as pessoas tivessem as mesmas possibilidades de sobrevida que os nobres e ricos do planeta?

As brincadeiras com Elizabeth II são, no mínimo, de humor duvidoso. Pior, escancaram o preconceito em uma cultura onde juventude é valor, quando não passa de breve fase da vida humana. Provavelmente as pessoas que criticam e criam memes sobre a Rainha tem seus pais ou avós mortos na casa dos 70, 80 anos.

Muitos dessas “humoristas” certamente não valorizam o SUS, que aumentou em muito a vida dos brasileiros e, certamente, desconhecem os tratamentos que levam à longevidade de uma pessoa. Confundem tratar a saúde com “harmonização facial”, procedimentos estéticos que mascaram o tempo, mas criam feições falsas, beiços imensos, caras rigidamente inexpressivas que, cá entre nós, a Rainha Elizabeth não tem…

Tenho ojeriza às críticas sobre a idade da Rainha Elizabeth. Nunca quis, nem quero ser súdito inglês. O que me incomoda, profundamente, é que em nosso país os idosos não são respeitados. Estamos vivenciando neste momento uma atitude dos governos paulistas – estado e município, a capital – tirando dos idosos a passagem gratuita nos meios de transporte: trens, metrôs e ônibus. É bom salientar que aposentado não tem aumento. Apenas reajuste que, para 2021, está empatado com a inflação. E a sociedade se cala.

Outro aspecto da desvalorização da velhice, no nosso país, está escancarado nas praias cheias, nos bares lotados durante a epidemia. Quantos desses frequentadores de locais aglomerados moram sozinhos? Quantos estão levando o vírus para dentro de casa e, com isso, colocando a vida de pais e avós em risco? A Rainha inglesa pode ficar afastada e, com toda a certeza, está protegida de gente irresponsável. Sim, é quase certo que ela sobreviverá à essa pandemia e, se a genética valer, ela ultrapassará os 100 anos, vivendo tanto quanto a Rainha Mãe. Pessoalmente, é o que desejo.

Nos versos do hino britânico, os ingleses pedem pela saúde e pela vida da Rainha: God save the Queen! Por aqui… Carecemos de campanhas para que cedam lugares em filas, em bancos de praça, em meios de transporte. Recentemente, a mãe de um amigo, já idosa, foi à feira e quis comer um pastel. Um casal consumindo pasteis ocupava três bancos, sendo que o terceiro banco destinaram ao suco e prato com o salgado. Sem lugar disponível, quando a idosa solicitou a cadeira deu início a uma discussão desagradável e desnecessária. Quantos exemplos similares teríamos para registrar?

Há outro lado: Fernanda Montenegro, neste dia 25, divertiu e emocionou o país ao lado de outra veterana, Arlete Salles, e da filha, Fernanda Torres. Neste momento, nas emissoras de televisão está o comercial onde Fernanda brilha. Fernanda e Arlete são exemplos ao lado de Lima Duarte, Francisco Cuoco, Natália Thimberg … Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Wanderléia… Todos acima dos 70 anos.  Também presenciamos inúmeras expressões de tristeza e respeito pela morte de Nicette Bruno que, não posso deixar de notar, viveu menos que a Rainha Elizabeth. Artistas idosos merecem nosso respeito tanto quanto a gente comum, seja de que profissão for.

Enfim, não vou falar de outro idoso a não ser eu mesmo. Tenho 65 anos! Já velho, para alguns, mas com a capacidade (dane-se a modéstia!) de muitas coisas! Entre elas escrever em defesa de gente mais velha do que eu. Eu gostaria muito que os “humoristas” que ironizam a idade de Elizabeth II olhassem para si mesmos, para o que tem, o que viram, o que farão. Tenho orgulho da minha idade e do tempo que já vivi – um pouco desapontado com o momento presente. Sobretudo tenho orgulho do que fiz. E tenho planos, muitos planos para o futuro. Estou aí, feito a Elizabeth, pronto para o que der e vier.

Não vou listar meus feitos, apelo para Macunaíma: “Ai! Que preguiça!” Agora, se quiserem fazer meme com minha idade, sou alguém que viu o homem pisar na lua, ouviu Elis Regina cantar Arrastão no Festival da Excelsior, usou calça calhambeque que era o que os jovens artistas da Jovem Guarda usavam e, se muito criança não percebi o horror que foi a instauração da ditadura militar, estive junto aos que lutaram pela democratização do país. Atendi Chico Xavier, assisti Bibi Ferreira, Ângela Maria, vi comício do acadêmico Mário Palmério e muito, muito mais…

Meu cotidiano de Pedro

A janela escancara um dia ensolarado e, preso, observo a rua tímida, como diria Chico Buarque. Sem Construção, o que emerge do escaninho de canções é Pedro Pedreiro, aquele penseiro esperando o trem.

Vejo uma moça andando lentamente, meio a esmo, segurando um cigarro e, na mão esquerda, uma máscara carregada pela alça. Dois mascarados, homens, não procuram namorados como diz outra antiga canção, esperam passageiros. Talvez esperem o Pedro que, cansado de esperar, resolva tomar um táxi.

Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa

Um tempo de espera esse 2020. Ingênuo, cheguei a pensar que seriam 15, 30 dias. E os dias, semanas, meses… Tento entender as pessoas que entregam a vida à própria sorte e saem, procuram trabalho, amigos, vão a festas, reuniões. Isto porque, na real, vem aquela coisa do Pedro, de esperar a morte, ou esperar o dia de voltar pro Norte. Mas, que Norte é esse?

Norte real, geográfico, não tenho. Quero ficar por aqui mesmo. Voltaria pra terra que chamei de minha, mas meus pais já não estão lá. Trago-os nas lembranças, no coração, em orações cotidianas. Norte profissional tá lento, feito Maria Fumaça tentando sobreviver em tempo de trem bala. É a pandemia, me consolo. De Norte afetivo vou bem, obrigado, e nesse “quesito” me distancio desse Pedro Buarque de Holanda. Só nesse!

Esqueço momentaneamente as mazelas desse nosso mundo pra divagar na durabilidade e atualidade de Chico Buarque de Holanda. Penso sair da janela e pegar um monte de CDs. Uma overdose do compositor pode acalentar o coração. Acalentar me lembra Acalanto, um acalanto nada bom:

Dorm’inha pequena

Não vale a pena despertar

Eu vou sair por aí afora

Atrás da aurora

Mais serena…

Ah, está tudo muito difícil, mas a gente tem o Chico Buarque. E Elis, Bethânia, Nara, todas pra cantar as músicas do cara. Esse Cara que não é dele, é do Caetano. Ambos nos consomem com seus olhinhos infantis, como olhos de um bandido. Só que, tchau, Caetano, não estou para o que der e vier. Estou esperando! Como o Pedro:

Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
… o carnaval
E a sorte grande do bilhete pela federal
Todo mês
Esperando a festa
Esperando a sorte…

Talvez minha única diferença desse Pedro Pedreiro é ter ouvido Chico desde a infância e, portanto, sei disso:

Pedro não sabe, mas talvez no fundo
Espera alguma coisa mais linda que o mundo
Maior do que o mar

E assim sigo, teimoso, atrás de um sonho, mesmo que impossível. Segurando o desespero da falta de vacina, do excesso de ignorância, do desconforto da máscara que me faz encarar, por qualquer lugar que vá, a morte, a doença, o fim. Reluto, insisto e sonho. Quero voltar atrás.

Ser Pedro Pedreiro, pobre e nada mais

Paro de escrever e vou ali, feito Januária ou Carolina, olhando o mundo pela janela. Esperando o trem, um trem de mineiro

Que já vem, que já vem, que já vem ….