As grandes gravadoras – ditas majors – nunca facilitaram a vida de nenhum artista. E a história guarda fatos e conflitos envolvendo vários dos maiores cantores, compositores e instrumentistas brasileiros. O artista faz sucesso e as majors passam a encarar a pessoa como produto, uma marca; algo que para manter o ciclo deve fixar tais características, ser sempre o mesmo, fazer tudo igual. Há os que resistem! Wanderléa é uma entre esses.
Quem segue a carreira da cantora sabe que os primeiros discos foram na Colúmbia, depois vieram outros de imenso sucesso na CBS, nesta cobrindo o período da Jovem Guarda. É bem provável que Wanderléa teria o mesmo destino de outras cantoras das jovens tardes de domingo, caso gostasse da ideia de manter-se ternurinha, maninha do rei Roberto. Ela queria mais e foi para a Polydor. O primeiro sucesso na nova gravadora deixava uma mensagem muito clara, em letra da própria cantora:
De repente acordei,
Vi que o sonho acabou para mim.
De repente, eu só sei, adeus! (Bye, Bye)
Talvez muitos fãs não tenham entendido o recado. De qualquer forma, Wanderléa manteve seus propósitos e o primeiro LP, Wanderléa Maravilhosa (1972) na nova empresa é um marco, deixando a Ternurinha lá na década de 60. Mais ou menos! Penso que foi imposição da gravadora ter uma versão de Rossini Pinto em meio a canções incríveis de Gilberto Gil, Assis Valente, Hyldon, Jorge Mautner. Mata-me depressa, a canção, é um pé preso ligando a cantora ao público acostumado com as canções do período anterior.
No segundo disco da Polydor a mineira e geminiana Wanderléa radicalizou com um naipe de compositores de primeiríssimo time no disco Feito Gente (1975): Gonzaguinha, Sueli Costa, Joyce Moreno, João Donato, Gilberto Gil, Luiz Melodia, e entre outras feras Walter Franco. Não se pode dizer que seja um disco de sucesso de massa e os tais fãs, aqueles do Pare o Casamento, ficaram por aí, pedindo e insistindo pelas Provas de Fogo da vida. Wanderléa deixou a Polydor.
Artista que se preza não se entrega, rompe barreiras, quebra paradigmas. Na nova gravadora, a Emi-Odeon, Wanderléa reiterou o recado dado no primeiro disco da Polydor ao unir-se a Egberto Gismonti para fazer aquele que é um grande marco musical de sua carreira: Vamos que eu já vou! (1977) E creio ser desse período o imenso prestígio que Wanderléa tem no meio musical. Se já era respeitada pela trajetória juvenil dos sucessos que nunca sairiam da memória dos fãs, é na Polydor e na Emi-Odeon que a cantora deixou claro que seguiria firme no objetivo de ir muito além. Veio Mais que a paixão (1978) com repertório caprichado privilegiando grandes compositores e participações especiais de Djavan, Moraes Moreira e Egberto Gismonti, o autor da canção que dá título ao LP.
Interessadas em maiores vendagens, as gravadoras tentaram impor à Wanderléa uma volta ao jeito Jovem Guarda. Um longo jogo visível em vários dos discos seguintes quando, sem muita razão de ser, entre gravações inéditas colocam “lembranças” com regravações de antigos sucessos. Junte-se a isso muitas coletâneas mesclando as diferentes fases. Enquanto isso a cantora fazia participações em discos de diferentes colegas, além de emplacar vários êxitos em trilhas de novelas. O público da fase juvenil manteve-se fiel, novas gerações passaram a seguir seu trabalho.
Em 2008 Wanderléa lança Nova Estação, pela Lua Music. O disco recoloca a cantora interpretando samba, blues, choro. E, em seguida, em 2013, grava ao vivo no Theatro Municipal de São Paulo o Wanderléa Maravilhosa. Novamente um marco denotando que a partir de então a cantora fará somente o que quiser. Isto inclui, inclusive, um retorno triunfal à Jovem Guarda no Show “60! Década de Arromba. Doc. Musical” (2016). Longa temporada no Rio de Janeiro e em São Paulo, depois percorrendo as principais cidades do país, a Ternurinha fazendo a plateia chorar de emoção ao rever os anos de 1960. Paralelamente, ela lançou Vida de Artista, com todas as faixas compostas por Sueli Costa, um disco suave e emocionante.
Nesta sexta-feira, 27 de maio, Wanderléa esteve no Sesc Santos com seu novo trabalho, onde canta chorinhos clássicos da história da MPB. Acompanhada por um octeto formado por ótimos músicos, a cantora apresentou todas as músicas do cd Wanderléa choros, do selo SESC. Confessando ser um sonho acalentado desde a infância quando ouvia no rádio Ademilde Fonseca, a cantora faz um resgate memorável do ritmo brasileiro esbanjando dicção, ritmo e interpretação, sempre com muita segurança. Os fãs estão presentes e em alguns momentos ouve-se um “canta senhor juiz” e outras canções da Jovem Guarda. Wanderléa encerra o show com Ternura, o primeiro mega sucesso de sua longa carreira. Passeia pela plateia, carinhosa e atenciosa para com quem a ama.
De volta ao palco, aclamada com pedidos de bis, prioriza os chorinhos, é o que quer cantar nesse momento. E a gente fica muito feliz por ela conseguir não ter se dobrado ao que as gravadoras quiseram para ela. O mínimo que podemos desejar aos artistas que amamos: Serem eles mesmos sobre o palco, fazendo e cantando o que bem quiserem.
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Obs. No título, o verso “Amo, respiro e ainda sei cantar” é da música Carne, osso e coração, de Joyce Moreno, incluída no show Wanderléa canta choros.