
Visto pela poetisa Elizabeth Bishop, o Brasil era colonizado, atrasado. Um paraíso de natureza exuberante e gente provinciana. Bishop faleceu em 1979. Morou por aqui por mais de 20 anos, com passagens pelo Rio de Janeiro, Petrópolis e Ouro Preto. Viveu um intenso romance com a arquiteta Lota de Macedo Soares. A história de ambas estará no filme “Flores Raras” que corre o risco de não ser concluído por falta de patrocínio.
É inacreditável pensar que um filme estrelado por Glória Pires não consiga patrocínio. O diretor Bruno Barreto e membros da família de produtores já denunciaram que as empresas recusam patrocínio. O projeto não é recente; já foi chamado “A Arte de Perder”, sempre com Glória Pires encabeçando o elenco. Segundo os produtores, o patrocínio não sai porque as empresas não querem associar a própria imagem com homossexualismo. É praticamente autocensura, já que a imposição não vem de fora. É o encarregado de decidir para onde vai a verba da empresa que julga impróprio a história de amor entre duas mulheres.

Foi no teatro que tomei conhecimento da história dessas mulheres, através do monólogo “Um porto para Elizabeth Bishop”, escrito por Marta Góes. Fui ver Regina Braga no Teatro Anchieta com certo temor. Monólogo é sempre um risco. Se a gente não gostar nos primeiros dez minutos, tudo fica pior, pois há a certeza de que ninguém entrará em cena para mudar o jogo, quebrar a monotonia, salvar a noite. Fui surpreendido pelo texto maravilhoso de Marta Goés, a interpretação soberba da grande Regina Braga e sai do teatro apaixonado pela poesia de Bishop.
A poetisa America amava Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Foi amiga de Manuel Bandeira. Traduziu esses e outros para o inglês – ela nasceu em Worcester, Massachusetts – divulgando nossos autores em textos para revistas especializadas, em cartas onde, por exemplo, afirma o grande clássico que é Machado de Assis. Como autora recebeu vários prêmios, entre eles o Pulitzer e o National Book Award. Mulher, foi alcoólatra, frágil, passou a vida lidando com perdas.

Bishop chegou por aqui em 1951 e conheceu Lota de Macedo Soares. Esta foi amiga de Carlos Lacerda e foi responsável pela construção do parque no Aterro do Flamengo. Lota era uma mulher aparentemente forte, decidida, intensa. Todavia, essa mulher passa por um colapso nervoso; depois tem um diagnóstico de arteriosclerose. Falece em New York, após ingerir grande quantidade de barbitúricos. Fico imaginando Glória Pires interpretando tudo isso e em inglês. As duas conversavam na língua de Bishop e o filme será quase todo em inglês. Glória Pires irá, mais uma vez, arrebentar.
“Flores Raras” pode não sair por falta de patrocínio. Orçado em 11 milhões, faltam R$ 2 mi para concluir as filmagens. Fico imaginando se o empresário, metido a censor, já leu algo de Elizabeth Bishop. Sei de três livros da poetisa publicados no Brasil. A peça de Marta Góes – será que o tal empresário viu? – é sucesso de público e crítica. A visibilidade do filme será internacional, já que a americana Miranda Otto interpretará Bishop, além do que, a comunidade literária internacional estará atenta para o resultado cinematográfico da biografia de Elizabeth Bishop.
A família Barreto já comprovou, mais de uma vez, a capacidade para fazer sucessos e, com Glória Pires, chegaram ao Oscar em “O Quatrilho”. Nesse Brasil de doidos – ou preconceituosos – troca de casais, pode; casal de mulheres não? Vamos ver no que dá e torcer para, mais uma vez, sair de casa para admirar o trabalho primoroso da atriz Glória Pires que, só por ser quem é, não merece ter um filme truncado por gente preconceituosa.
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Bom final de semana.
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Notas: “Uma arte” e “Esforços de afeto” são livros de Elizabeth Bishop publicados no Brasil. Além desses, com um estudo introdutório muito bom, há uma seleção de Paulo Henriques Britto: “Elizabeth Bishop – Poemas do Brasil”. Todas essas publicações são da Companhia das Letras.
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