Cenas de hospital

 

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Verde = Duas horas de espera! Tudo bem.

Antes de qualquer coisa, eu vou bem, obrigado. O tempo em São Paulo é instável e meu pulmão me ajuda a crer que, realmente, sou geminiano. Por conta dos astros e de variações de temperatura, poluição e sabe lá o que mais, fui parar no hospital. Demorei pra tomar a decisão. Hospital tem um quê de cadafalso…

Macaco velho, eu antes tratei de passar em uma lanchonete garantindo estômago forrado. Barriga cheia deixa boa qualquer que seja o tipo de vida; além do mais, hospitais estão longe de lembrar casa de avó, onde a gente come até encher.

Segui o caminho indicado pela plaquinha de pronto atendimento e, salão lotado, me toquei da tal PEC que reduz gastos com serviços públicos. Bom, sou um sujeito com uma sorte razoável e o hospital me atende com uma rapidez digna do lendário Ayrton Senna. A enfermeira me coloca em uma cadeira e começa a medir pressão, febre e enquanto inquire sobre o que eu penso que tenho observo uma mensagem interna do setor: Tempo médio para atendimento imediato: 56 minutos. Meta estabelecida: 49 minutos. Mais para Barrichello que Senna… Agradeci aos deuses a boa sorte.

A dor no coração não era nada, descobriu-se com o exame seguinte, o eletrocardiograma. Pensei, sem revelar ao casal de enfermeiros, que a dor no peito estava mais para medo do que qualquer outra coisa.  O lance mesmo é o pulmão, o sistema respiratório e como isso mata lentamente fui presenteado com uma pulseira verde e mandado de volta à sala de espera aguardando chamada do médico.

Uma enorme placa indica as cores e o tempo médio para atendimento. Não adianta o Verdão estar em primeiro lugar no campeonato. Pulseira verde indica duas horas de espera (tempo médio!).  Optei pela calmaria e pelo otimismo da Pollyanna; afinal, há cores que indicam três, QUATRO horas de tempo de espera! O jeito é relaxar e, economizando bateria do celular, bisbilhotar a humanidade.

Primeira grande figura, uma senhorinha de olhar esperto, corpo esguio, falando animadamente ao telefone. “– Não decidi ainda! Estou decidindo se fico aqui, ou vou para o “Nove de Julho”. Quero falar com o médico! Depende do ele me disser e eu decido”. E repetiu várias vezes o delicioso exercício da autonomia. O interlocutor, parece, tinha pressa e pressionava para que a decisão viesse logo e a senhora, olhando-me com simpatia, reafirmava: – Não me decidi ainda!

No guichê um senhor de terno e gravata, também ao telefone, esbravejava com uma atendente distante, de um convênio, e com a recepcionista do hospital. “– Sou médico! Exijo uma solução! Quero que resolvam logo! Minha mãe tem 104 anos! Não pode esperar!”. Acredito que ele repetiu umas trinta vezes que era médico, querendo falar com a direção, com o médico de plantão, com o PROCON, a diretoria, enfim, o mundo! Sou médico! Repetia, vou processar vocês. E eu ali, pensando nas ironias da vida: um médico que não consegue cuidar da própria mãe, desesperado e impotente perante a burocracia que envolve hospitais e convênios.

Muda o ângulo. A televisão mostra o trânsito exacerbado do fim do dia. Um japonês entra com uma máscara dessas comuns, evitando a sujeira do ar. Tem passos firmes, decididos e evita ostensivamente sentar-se ao lado de uma senhora negra. Noto então que ela é a única paciente afrodescendente no local. Ela ignora o  indivíduo e percebendo-me observar o momento sorriu e deu de ombros. O cidadão foi para o canto extremo da sala, permanecendo de pé.

Tempo, tempo, tempo… Um senhor, bem debilitado, está acompanhado por uma senhora e um rapaz. Quando chamado para ser atendido, precisa da ajuda do rapaz que, mantendo o olhar fixo no celular, levanta o outro segurando o mesmo duramente pelo braço. Foram em direção ao consultório, o doente guiando o viciado em telefones…

Entra uma segunda mulher afrodescendente no recinto. Menos favorecida, pois carrega uma mala grande, uma sacola enorme e, como se não bastasse, empurrando uma cadeira de rodas ocupada por um senhorzinho visivelmente doente. Atrás do casal “D.Sinhá” com uma carteira de mão, o fatídico celular e as ordens secas:” – Cuidado, vá por ali! Veja se ele não sente frio!”. Um enfermeiro rapidamente acudiu, empurrando a cadeira para a empregada, no que a patroa não titubeou:”- Segure minha bolsa!”.

Duas horas! Muitas pequenas cenas! O rapaz comendo sem parar (- Isso! Penso eu.). Um senhor roncando, boca aberta. Outro, acompanhando a mãe, fazendo-me recordar Flávio de Carvalho ao lado da mãe, na Série Trágica. E finalmente fui chamado. Novamente observam minha pressão, examinam a garganta, o pulmão, encaminham para radiografia e, tudo muito rápido, volto ao médico para receber uma série de remédios e indicações para o tratamento.

Gosto e agradeço o atendimento recebido no Hospital Oswaldo Cruz. Saí de lá altas horas, pensando em como seria sem o convênio, se tivesse ido para um posto público. De novo a PEC! Fui direto à farmácia e gastei uma bela grana em remédios. A PEC outra vez, com indícios de cortar a farmácia popular! Voltei para casa e tratei de tomar mais uma refeição. Não há doença que resista ao estômago cheio. E chocolate, muito chocolate para compensar as amarguras da vida.

Estou bem! Obrigado. Rezando por todos os que não têm tratamento digno nesse nosso complicado país.

Até mais!

Flávio de Carvalho e a “Série Trágica”

Tempos de escola, nada foi tão perturbador quanto conhecer a “Série Trágica”, de Flávio de Carvalho. São nove desenhos representando a agonia e morte da mãe do artista; esses trabalhos estão na coleção do Museu de Arte Contemporânea da USP. Talvez pelas fortes sensações, ante o que o professor Percival Tirapelli nos mostrava, guardei a impressão de que os desenhos haviam sido feitos ao lado do leito de morte de D. Ophélia Crissiuma de Carvalho.

SÉRIE TRÁGICA - I - Minha mãe morrendo, 1947, MAC - USP

Os nove desenhos a carvão, exemplos de um expressionismo intenso, vigoroso, são composições derivadas de um conjunto realizado a caneta que, sim, foram compostos ao lado do leito de morte da mãe do autor. Esses trabalhos têm recebido merecidos estudos por críticos, historiadores, entre outros. Há, quase sempre, uma busca de relações com outras obras, com outros movimentos artísticos.

SÉRIE TRÁGICA - II - Carvão, 1947, MAC - USP

O dia de Finados chegando, o pensamento voltado para aqueles que se foram e foi inevitável lembrar-me da obra de Flávio de Carvalho. Em uma tarde já distante, enquanto estava ao lado do leito de meu pai, então doente, senti a necessidade de desenhá-lo, buscando fixar aquele semblante tão significativo em toda a minha vida. Também foi uma maneira de vencer o tédio, o tempo que teima em ser violentamente vagaroso quando estamos dentro de um hospital. Enquanto esboçava traços amadores, lembrei-me da “Série Trágica” e parei, imediatamente, com um terrível receio de que ocorresse um desfecho semelhante. Felizmente, meu pai saiu daquele hospital e ainda sobreviveu bastante tempo.

SÉRIE TRÁGICA - VII - Carvão, 1947, MAC - USP

Os desenhos de Flávio de Carvalho foram feitos em 1947. As bases para trabalhos desse tipo são exercícios de captação instantânea, feitos na maioria dos cursos de desenho. Gostava muito de sair pelas imediações do Instituto de Artes, então no bairro Ipiranga, para captar a paisagem, ou alguma situação observada. Não me exercitei tanto quanto gostaria e nunca me senti um desenhista. Era bom exercitar a forma expressiva, fixar o que meus olhos observavam.

SÉRIE TRÁGICA - IX - Carvão, 1947, MAC - USP

O autor da “Série Trágica”, que tem uma vasta obra na pintura, na arquitetura e em outras formas expressivas como o teatro e a literatura, fez de seus desenhos obra de arte. Quanto mais observo os trabalhos desta série mais vejo a vida indo embora, ou então, sinto-a desesperadamente preservada. O trabalho do artista não retém a vida, mas o instante em que a mãe ainda vive, o momento em que a vida se despede do corpo. Perturbador.

Flávio de Carvalho foi irreverente, transgressor. É sempre lembrado por pinturas onde a cor é, no mínimo, exuberante. A arquitetura é parte da história do engenheiro formado na Inglaterra. A originalidade de atitudes ficou definitivamente marcada pelo passeio do artista pelas ruas de São Paulo, propondo o saiote como vestimenta ideal para nosso clima tropical; e isso nos anos de 1950. Faleceu em 1973. Uma obra sobre a qual vale refletir.

 

Bom feriado!