VANDRÉ, PRA NÃO ESQUECER QUE TIVEMOS DITADURA.

geraldo vandré

Vim de longe, vou mais longe
Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta pra junto a gente cobrar
No dia que já vem vindo que esse mundo vai virar…(1)

Há muita coisa por ser revelada desse triste período da nossa história… 1964! E quem está interessado em dizer que a “ditadura foi boa para o país” só pode querer minimizar culpas, receando cobranças sobre responsabilidades ou… demonstrar imensa ignorância e desconhecimento da história.

Recordo-me vagamente desse distante 1964. Depois soube de conhecidos presos, um tio de outro vizinho desaparecido e a irmã de uma grande amiga, escondida dentro de casa. Mas eu era criança e certamente aproveitei bem aqueles dias.

Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando, e canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar… (2)

Seria bom perguntar para milhares de famílias cujos parentes, filhos, foram torturados, mortos, o que eles acham dessa tal “ditabranda”.

Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão,
Eu venho lá do sertão,
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar…(3)

A vida de Geraldo Vandré, após a ditadura, já virou folclore. É certo que foi exilado e saiu daqui para o Chile, e de lá também teve que sair, indo para a Argélia, a República Federal da Alemanha, Grécia, Áustria, Bulgária, Itália, França… Mas Geraldo Vandré também foi intérprete, grande intérprete.

Eu sem você não tenho porquê
Porque sem você não sei nem chorar
Sou chama sem luz, jardim sem luar
Luar sem amor, amor sem se dar… (4)

O compositor, enquanto porta-voz de sua gente, cabra-macho da Paraíba, não teve medo de chamar para a briga quando sentiu necessidade.

Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos, de armas nas mãos
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão… (5)

Deixando-nos um convite irrecusável:

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer… (6)

Geraldo Vandré, provocando, fazendo acender a luz da incerteza, da desconfiança, abriu caminho para o conhecimento do que estava realmente ocorrendo.

Vida que não tem valor
Homem que não sabe dar
Deus que se descuide dele
Jeito a gente ajeita
Dele se acabar.
Fica mal com Deus… (7)

História pra ser vivida, pra ser lembrada. Tivemos uma ditadura. Conheçamos as consequências disto para que possamos tomar todas as medidas necessárias para que não se repita.

Até!

Nota – As músicas citadas acima são:
1 – Arueira –Geraldo Vandré
2 – Porta Estandarte – Geraldo Vandré e Fernando Lona
3 – Disparada– Geraldo Vandré e Théo de Barros
4 – Samba em Prelúdio – Baden Powell e Vinícius de Moraes
5 e 6 – Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores – Geraldo Vandré
7 – Fica Mal Com Deus – Geraldo Vandré

E a banda passa!

chico e nara e jair
Jair Rodrigues, Nara Leão e Chico Buarque, em 1965

Nunca pensei em ver “A Banda” passar. Aquela mesma, “A Banda”, do Chico Buarque que prefiro na voz de Nara Leão e que, invadindo a infância, permaneceu no cantinho de meus grandes afetos. Há como não gostar de “A Banda”? E se de repente… E não é que a banda passou de novo! A história veio bonita e meio torta, bem torta mesmo; mas, quem tá preocupado com linha reta?

Eu não “estava à toa na vida” e sim, tomando banho. Aos poucos a música, de longe, foi se aproximando, se aproximando. Logo recordei ser o primeiro sábado após o carnaval, quando sai aqui pelas ruas do bairro um simpático bloco conhecido como “Enterro dos Ossos”, fechando as festas de Momo na Bela Vista. Meu amor, não me chamou! Mas me avisou que a banda subia a nossa rua vinda lá dos lados da Rua Martiniano de Carvalho em direção à Brigadeiro Luis Antonio.

“Despedi-me da dor” e ainda molhado, enrolado em toalha de banho, fui pra janela ver a banda passar. Estávamos todos lá: o “homem sério” abandonou o caixa e saiu para a rua e, nesta, “o faroleiro” empunhava copo de cerveja como troféu. Várias namoradas, de todas as formas, de todas as idades estavam acompanhando a banda ou paradas, no passeio, “para ver, ouvir e dar passagem”.

O bloco “Enterro dos Ossos” é cheio das manhas. Tem lá sua porta-estandarte, seu abre-alas – uma charanga toda colorida e enfeitada – e músicos que formam uma suave e deliciosa banda. Esta enche nossas ruas de velhas canções de outros carnavais. Pura nostalgia! Grandes marchinhas, marotas e sempre, sempre “cantando coisas de amor”.

Eu não estava pensando em Chico Buarque! Nem em Nara, nem na música que venceu o Festival de Música Popular Brasileira de 1965, empatando com “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, cantada por Jair Rodrigues. Nem mesmo pensava em fim de carnaval. Era apenas sábado e no domingo, dia 5, Daniela Mercury tomaria a cidade com seu Trio Elétrico e aí sim, eu iria fazer o meu “enterro dos ossos”. Foi então que…

Filmei a passagem do bloco pela minha rua para mostrar via redes sociais aos amigos e familiares. Quis registrar o contraste do “meu” quarteirão vazio e, a partir da esquina, a rua tomada pelo bloco. Lamento não ter o registro ideal, mas, caro leitor, observe no vídeo abaixo que há um pequeno edifício à esquerda em frente do qual o bloco está parado. E parou porque no segundo andar, no terraço, uma simpática velhinha dançava e acenava aos foliões. Como não lembrar que “O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço pra sair no terraço e dançou”?

Hoje é domingo; no outro, com Daniela Mercury, dancei pouco e tomei um banho de chuva de mais de duas horas. Esta noite está silenciosa e as ruas do Bexiga estão sossegadas. Essas mesmas ruas cheias de momentos como aquele em que, vendo a senhorinha dançando no terraço, dei-me conta e exclamei: “- Foi isso que o Chico Buarque viu!” e transformou em canção, e povoou o coração de milhares de brasileiros com lembranças de bandas que cantam coisas de amor.

Tempos bicudos. Tais como aqueles que vieram após o golpe militar. Recordo que, na época, havia murmúrios que condenavam a nostalgia de Chico por “fugir” da realidade com uma “velha” marchinha. Cinquenta anos depois, vendo “O Enterro dos Ossos” e a Bela Vista em festa veio-me a certeza de que é este o Brasil que é nosso; alegre, leve, suave, o país que “tomou seu lugar depois que a banda passou”.

A banda ou o bando que tomou o país em 1964 passou; outro bando que está por aí, impedindo o país de cantar, também terá seu fim. Paramos para brincar carnaval, mas já voltamos. Estamos aqui, atentos, prontos para continuar. E lutaremos por um país melhor porque também amamos bandas, blocos, carnaval, e belas senhorinhas cantando nos terraços.

Até mais!

A cartomante estava certa

.

Para meu amigo Fernando Brengel.

.

Na última segunda-feira revi Zuzu Angel, o filme dirigido por Sergio Rezende que narra a história da estilista carioca. O filho de Zuzu foi preso e morto pela repressão no período da ditadura militar. A mulher empreende uma busca ingrata pelo filho, em um ambiente hostil onde os donos do poder arrogam-se o direito de não responder, de mentir. Quando informada que o filho morreu torturado na prisão, Zuzu passa a reivindicar o corpo do filho; acaba sendo morta em um acidente provocado por agentes da repressão.

Uma canção de Chico Buarque sintetizou a trajetória de Zuzu em música denominada “Angélica”. Ao mesmo tempo em que Chico evidencia o aspecto angelical da mulher, que lamenta a tenebrosa perda, também se esquiva da censura que proibiu a imprensa de publicar qualquer coisa sobre o assunto.

Quem é essa mulher

Que canta sempre esse estribilho?

Só queria embalar meu filho

Que mora na escuridão do mar…

A nossa história está carregada de mandos e desmandos de gente poderosa. Podemos dizer que os militares são filhos dos coronéis do passado, que tudo resolviam pela força, pelas armas. De maneira leve, quase lúdica, esses coronéis estão lembrados, presentes em Dona Flor, interpretados por atores notáveis como Antonio Fagundes e José Wilker.

A crença no poder assentado pela força ainda é bastante presente entre nós. Em uma simples relação de um casal há resquícios de militares, de coronéis, quando o sujeito, com uma inflexão peculiar, refere-se à companheira como “minha mulher”. A expressão determina quem manda, indica uma pretensa superioridade.

O problema sai da esfera individual quando tememos alguém por conta da quantidade de dinheiro ou pela posição que esse ocupa na sociedade. A tendência à submissão pelo medo, pela ignorância, é um triste fato constante na história da nossa gente. Da mesma época de “Angélica” há outra música, de Ivan Lins e Victor Martins, que parece incitar-nos à submissão:

Nos dias de hoje é bom que se proteja
Ofereça a face pra quem quer que seja
Nos dias de hoje esteja tranqüilo
Haja o que houver pense nos seus filhos…

Temos origem portuguesa e há sempre um fado pairando sobre nossas cabeças. A tristeza, a amargura e a descrença ameaçam nosso cotidiano. Tendemos a acreditar que o país não tem jeito, que nada mudará, que as coisas permanecerão como sempre foram. Uma atitude de esperança soa como ingenuidade. A felicidade é coisa de “jogo do contente” e para evitar repetir Pollyana seguimos, cinicamente, ignorando que é possível mudar. No entanto…

A música de Ivan Lins e Victor Martins chama-se “Cartomante”, longe de pregar a submissão, funcionou como profecia que, aos poucos, tornou-se realidade.

… Tá tudo nas cartas, em todas as estrelas
No jogo dos búzios e nas profecias

Cai o rei de Espadas
Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus
Cai, não fica nada.

O Mensalão começou. Não sei quem está certo. Não sei quem é inocente ou culpado; todavia, o país que foi de coronéis de nome e militares de carreira vem evoluindo e, dentro da legalidade, botando ordem na casa. O mais importante nesse julgamento, que toma conta do noticiário, é o cacife dos réus. O STF – Supremo Tribunal Federal – ignora profissões, cargos políticos em um avanço democrático notável. São 38 réus entre deputados federais, ministros e secretários. A lista ainda conta com um publicitário, um tesoureiro e um diretor de marketing. O prefeito de Uberaba está entre os réus; na época dos acontecimentos agora em julgamento ele era Ministro dos Transportes.

Ivan, Chico e Vandré, nos discos em que estão as canções aqui citadas.

Que ótimo viver em um país onde um figurão é julgado publicamente. Infelizmente há a possibilidade de tudo terminar em pizza. Também é fato que bons pratos não são esquecidos. O Mensalão não é fato isolado e a história está aí, registrando a derrocada de outros que após julgamentos tiveram a carreira pública encerrada. A semana que começou com a triste história de Zuzu Angel termina com um alento, uma esperança de um país melhor. Dá até vontade de voltar no tempo, lembrar Geraldo Vandré e cantar “Pra não dizer que não falei das flores”…

Os amores na mente, as flores no chão

A certeza na frente, a história na mão

Caminhando e cantando e seguindo a canção

Aprendendo e ensinando uma nova lição…

.

Bom final de semana.

.

Racionais

Sobrevivendo no inferno!

“Todo homem tem sua hora e sua vez” diz a personagem Augusto Matraga, de Guimarães Rosa. “Quem sabe faz a hora” cantou Geraldo Vandré. E o Chico Buarque, falou de um homem da periferia: 

“Pedro, pedreiro, penseiro esperando o trem…

 …esperando aumento para o mês que vem

Esperando a festa, esperando a sorte

E a mulher de Pedro, esperando um filho…” 

E esse filho do “Pedro Pedreiro” poderia ter sido Pedro Paulo S. Pereira que um dia virou “Mano Brown” e que, decididamente, não é filho do “Pedro, pedreiro, penseiro”. Porque esse, esperava “um filho pra esperar também”. O PEDRO, agora dito MANO, decidiu abrir a boca contra um monte de coisas que afetam sua gente. Com muito ritmo, suingue, ginga e força! Fez sua hora e sua vez.

Racionais
O "Mano"
Naldinho

Conheci o RACIONAIS MC’S através do meu amigo Robson. Antes disso, ouvia aqui e ali esse tipo de manifestação, mas faltou algo que me fizesse prender a atenção. Robson é o próprio “171” (rs)! E constantemente, mandava ver nos versos infindos da letra.

“Hoje eu sou ladrão, artigo 157

As cachorra me amam,

Os playboy se derretem…”

Imagine você dentro de um elevador (portanto, sem pra onde fugir) e o cara falando, falando, falando…. Do vigésimo andar até o térreo, passando pela portaria, o estacionamento… “-Cara, cale a boca!”  Que nada. E aí passou a ser zoeira. Era estar no trânsito, sem saída, e pronto: tome ladainha infinda.

Bom, se o cara se diz 157, eu vou confiar? Claro que não. “- Então, tá,” disse ao amigo, “cante a música inteira, eu vou ouvir!” E assim, atento para evitar o 171, percebi e conheci EU SOU 157, todo disco SOBREVIVENDO NO INFERNO, com o DIÁRIO DE UM DETENTO e outras, mais leves, como FIM DE SEMANA NO PARQUE.

Também, pelo ROBSON, conheci o Ndee NALDINHO; e acho que a descrição do assalto, antecedentes e consequências, em O QUINTO VIGIA, é algo raro na literatura (dita aqui de maneira mais ampla – envolvendo a produção escrita de um determinado país), pela veracidade e capacidade de síntese, detalhando friamente o acontecimento. A emoção fica por conta de quem escuta.

A ELITE, também é um marco divisor das diferenças sociais que rolam no país. NALDINHO, nessa letra, vai fundo no conflito social estabelecido a partir da condição social dos jovens e seus padrões de consumo: “os boyzinhos x os manos”.

E aí, TATTYANE FERNANDES, o que eu acho do RACIONAIS, NDEE NALDINHO? Eles são verdadeiros e, por isso, indigestos para o sistema. Às vêzes, rancorosos; todavia, é só colocar-se no lugar de quem vive os problemas que esses grupos cantam que o rancor é justificado.

Neste momento, por exemplo, a grande imprensa quer saber se o Brasil é ouro, prata ou bronze. E o rap tende a estragar o esquema dos “caras”, sacou? Vamos todos celebrar CIELO e sua medalha de ouro para a natação (Beleza! O cara merece!) e, já que o feito foi na água, esquecer o racionamento e, pior, a falta de água potável para milhares de brasileiros (deixar pra depois?).

Um disco divisor de águas
O preferido do Robson, meu amigo

A TV adora contar as desgraças cotidianas nos telejornais. É só uma notícia, rápida e, no próximo quadro, vamos esquecer e já comemoramos os 50 anos da BOSSA NOVA. Tem também o fator tempo: músicas como AGORA, do Nx ZERO só duram três minutinhos e pouco. Como segurar audiência com sete, oito minutos  de RAP com palavrões, estupros, vagabundas, ladrões, drogas, violência?

É comum ouvir, nas conversas das pessoas, reclamações contra a novela A FAVORITA. Todo autor de novela defende o folhetim enquanto “estória”; não carece de realismo. E dá-lhe absurdo para Floras e Donatelas. A realidade, em novela, é enfeite de bolo. Reclamações de “todo mundo”, mas a novela continua mantendo sua média de 40 pontos de audiência… Boa parte da população prefere uma mentirinha enfeitada com gente bonita.

Se em A FAVORITA, rolasse o universo descrito em DIÁRIO DE UM DETENTO, o que ocorreria?  O rap, de 1997 precedeu filmes, tipo CARANDIRU e CIDADE DE DEUS (2002). Nesses, a miséria tornou-se estética cinematográfica gerando prêmios por todo lado. Deu prestígio e carreira internacional para diretores e atores. Mas foi gente “de cá” falando sobre o pessoal “de lá”.

O RACIONAIS MC’S é “de lá”, sacou? E como evitam, fogem, brigam contra o sistema “de cá”, não os veremos no Gugu, nem no Faustão, nem no Fantástico e muito menos na Hebe (Eu adoraria ver a reação do MANO BROWN se ela o chamasse de “gracinha”).

Quando os jovens classe média (ou seja, “de cá”) cantaram os problemas nacionais nos anos 60, 70, eles viraram NARA LEÃO, CHICO BUARQUE, GERALDO VANDRÉ… Vamos ver o que o futuro reserva para os NALDINHOS e MANOS BROWNS da periferia.

Até!

(publicado originalmente no Papolog)