Viagem Nº 2

Oh tristeza, me desculpe

Estou de malas prontas

Hoje a poesia veio ao meu encontro

Já raiou o dia, vamos viajar

               Estava aqui, com meus botões já gastos de tanto confinamento e, de repente, deixei a memória ir longe, onde tudo é possível. Com jeitinho, tudo é até melhor, mais bonito, mais saudável. Benditas lembranças que nos permitem ir para onde a gente bem quiser. E viajar está, desde sempre, entre as coisas que mais gosto. Pode ser para logo ali, ou lá, mais além-mar. No final da estrada, onde Judas perdeu as botas. Nos cafundós desse Brasil imenso…

Vamos indo de carona

Na garupa leve do vento macio

Que vem caminhando

Desde muito tempo, lá do fim do mar

               O vento me leva para a estrada, pela Via Bandeirantes, e só me sinto saindo de São Paulo quando passo pelo Pico do Jaraguá. Começam a surgir mesmices reflorestadas, mas verdes, plenas do verde e, em dias bons, do perfume de eucaliptos. Pensamento recorrente, ressinto-me da falta de verde e a memória me joga lá pra adolescência, em Uberaba, quando pegava a bicicleta e ia pra zona rural (Na época era zona rural). Passava o posto da Fepasa de Amoroso Costa e entrava no corredor de gado, passando por Rodolfo Paixão e sempre parando em encruzilhada, para onde era só mato, descansando e meditando sobre… nada.

Vamos visitar a estrela da manhã raiada

Que pensei perdida pela madrugada

Mas que vai escondida

Querendo brincar

               Minha estrela está além da Bandeirantes, entrando pela Via Anhanguera afora até atravessar o Rio Grande e entrar em terras de Minas. O percurso é longo e, sem pressa, vou degustando a viagem. Nem passei por Jundiaí! De um lado da estrada a cidade, e do outro, fazendo uma linha com o horizonte, um campo de aviação onde é possível ver aviões decolando ou pousando. Aviões ínfimos se comparados aos maiores que, daqui a pouco, serão vistos à esquerda de quem sai de Sampa. Descem e sobem no rumo de onde deve estar Viracopos, onde trabalhei e depois, muito tempo depois, voltei como passageiro.

               Escolho deixar a Bandeirantes e entrar no primeiro trevo da Anhanguera, em Campinas. Penso nos meus avós, nos meus tios e sigo em frente. Passo pelo que restou da Bendix, onde trabalhei e, no lado oposto ao da empresa, vejo ao longe o bairro onde morou minha prima Dalva. Há muito não vou por lá.

Senta nessa nuvem clara

Minha poesia, anda, se prepara

Traz uma cantiga

Vamos espalhando música no ar

               Antes que Campinas fique para trás vem forte a lembrança de meu irmão. A entrada da Via Dom Pedro (nunca sei se é primeiro ou segundo) sai em direção ao bairro onde Valdonei morou. Sinto saudade e vou rezar por ele quando passar em frente à Igreja de Nossa Senhora Aparecida, que lá atrás o Pe. Líbero não quis como paróquia por estar isolada, muito isolada. Ela está próxima de escombros do que um dia foi a fábrica de óleos Minasa, onde também trabalhei. Por seis meses! Esse pedaço da estrada pesa um pouco. Melhor tocar em frente.

Olha quantas aves brancas

Minha poesia, dançam nossa valsa

Pelo céu que um dia

Fez todo bordado de raios de sol

               Deixo a mente vagar e só vou atentar para outra fábrica, de cachaça, em Pirassununga. Meu padrinho Nino era chegado em pinga. “… Porque gosto dela, bebo da branca, bebo da amarela, com limão, cravo e canela…” Em Pirassununga ele cumpriu obrigação de jovem, no exército. Meu pai gostava de atirar, se destacou em tiro ao alvo, no exército. Eu gosto de exército circunscrito ao exército, se estou sendo bem claro.

Vai demorar um bocado pra chegar a Ribeirão Preto. O reflorestamento ainda aborrece, mas já consigo ver resquícios de mata ciliar, de montes cobertos por… quem sabe, mata original. Há um imenso aclive no que pessoalmente chamo de Serra de Santa Rita. São quatro quilômetros de subida que sempre, na volta, descíamos na banguela economizando gasolina. E nem estava no preço que está hoje! Logo passarei por Cravinhos e por Ribeirão Preto.

Oh poesia, me ajude

Vou colher avencas, lírios, rosas, dálias

Pelos campos verdes

Que você batiza de jardins-do-céu

               A Via Anhanguera tornou-se uma longa marginal que atravessa Ribeirão Preto. Em direção a Minas fiz todo o trecho que vai do trevo principal, entrada para a cidade, até o viaduto da Fepasa, sobre a estrada que, quando eu era criança, ficava em pleno mato. Duas caminhadas memoráveis:

Com papai e mamãe saímos de trem de Uberaba para Ribeirão Preto. A estação de trens era bem nova, mas estava no meio do mato. Por indicação da minha tia Olinda, descemos do trem e caminhamos pelos trilhos (quem está na estação de Ribeirão Preto é sentido Campinas) até o tal viaduto, descendo deste até a estrada e, mais uma boa caminhada, até chegar à Vila Abranches.

Dessa mesma Vila, outra vez saí com meu primo, caminhando pela estrada em direção oposta, até o trevo (na época era o único) e, entrando para a cidade, passávamos por uma fábrica de bolachas, de onde sempre vinha um cheiro delicioso de coisas assadas. Uma caminhada tranquila, interrompida por um temporal de verão. Entramos ensopados pela cidade e, como dois bons adolescentes, tomamos rumo da Praça XV de Novembro onde não tomamos chopp do Pinguim, mas tomamos sorvete sentados nos bancos da praça.

Mas pode ficar tranquila, minha poesia

Pois nós voltaremos numa estrela-guia

Num clarão de lua quando serenar

               Nunca mais voltei. A cidade passou a ser um ponto por onde vou ou volto. Passando pela Vila Abranches recordo canções ouvidas na infância, leite tomado quentinho, ouvindo o barulho dos animais todos da chácara de D. Dina. A estrada pede caminho, ir em frente, vou passar pelo Rio Pardo e olhar em direção a Jardinópolis, por onde gostava de passar quando viajávamos de trem. Em Orlândia, inevitável, vou recordar uma viagem com Tia Amélia, para visitar meus padrinhos Toninho e Rosária, queridos, muito gentis. Em São Joaquim da Barra passo por uma placa que anuncia faltarem 100 quilômetros para Uberaba. Dependendo do motivo da viagem rola desespero ou alívio…

               Pioneiros é um local que um dia foi chamado de Bacuri. Fica logo após São Joaquim da Barra e é um lugar da maior importância. Lá nasceu minha mãe, Laura, batizada no município vizinho. Não é o momento de entrar e rever as velhas casas que restaram da extinta estrada de ferro que, atualmente, passa longe dali. Passando por Buritizal já me sinto próximo de coisas de Guimarães Rosa. Minas está perto.

Ou talvez até, quem sabe,

Nós só voltaremos no cavalo baio

O alazão da noite

Cujo o nome é raio, raio de luar.

               Já estou ansioso e não vejo a hora de atravessar o Rio Grande, quando nunca deixei de pensar: cheguei! Minas tem um cheiro, um ar… Minas tem as montanhas, e logo após o Rio começa um brincar de montanha russa, com um sobe e desce de responsa. A memória, bendita memória. Essas longas subidas e descidas me lembram Beto Rockfeller, o inesquecível personagem interpretado por Luís Gustavo. Pra fazer firulas com a namorada, o Beto apostou que chegaria de helicóptero em uma festa. Para conseguir a aeronave, alegou aos proprietários que precisava levar um doente para Uberaba. Aquele sobe e desce horrível da estrada tinha que ser evitado e, para isso, só voando. Conseguiu.

               São angustiantes os minutos que antecedem passar pelo Catetinho, um antigo restaurante atualmente em ruínas. Às vezes parecem eternos, o trecho longo demais, enlouquecedor de tão longe. E o pior é ter a certeza de que, quando na volta, passará rapidíssimo, aumentando o distanciamento da cidade amada. Mas passo pelo Catetinho, logo, logo, por uma ponte sobre a estrada de ferro, e aí não tem mais lero-lero. Estou em Uberaba.

Vamos visitar a estrela da manhã raiada

Que pensei perdida pela madrugada

Mas que vai escondida

Querendo brincar

Já sinto cheiro de café, pão de queijo, bolo… Sinto o calor de abraços, a ternura de beijos.

Estou com meus sobrinhos, meus irmãos, meus pais… Bendita memória! Benditas lembranças!

Com licença, tá na hora de curtir a família.

Até mais.

Notas:

Viagem (a número um, letra que me inspirou aqui) é canção de João de Aquino e Paulo César Pinheiro. Convido você, leitor, a ouvi-la na interpretação de Marisa, a Gata Mansa.

Clara Nunes, sempre!

Clara Nunes

30 anos sem Clara Nunes! Na próxima terça-feira lembramos aquela que está entre as maiores sambistas brasileiras, mineiríssima Clara das Gerais, falecida em 02 de abril de 1983. Uma morte ingrata para uma jovem com apenas 40 anos de vida, que colhia os frutos de uma carreira de imenso e merecido sucesso.

Algumas faces dessa cantora inesquecível: Quando a gente pensa em  forró, quem se lembra de Clara Nunes em “Feira de Mangaio”, “Viola de Penedo”, com a mais pura e esfuziante alegria nordestina? A brasilidade da cantora atravessa regiões e ela manda bem no forró do mestre Sivuca.

“Fumo de rolo, arreio e cangalha

Eu tenho pra vender, quem quer comprar

Bolo de milho, broa e cocada

Eu tenho pra vender, quem quer comprar…”

Se for para lembrar alguém que gravou grandes poetas, aparece o nome de Clara Nunes em canções como “Tu que me deste o teu cuidado” (Manuel Bandeira) e “Ai,quem me dera” (Vinícius de Moraes)? Esta canção do grande mestre tem poucos registros; quem conhece a gravação de Clara Nunes entende a dificuldade em sobrepujar a interpretação da cantora.

“Ah, se as pessoas se tornassem boas

E cantassem loas e tivessem paz

E pelas ruas se abraçassem nuas

E duas a duas fossem ser casais…

Creio que algo irá ser dito sobre os grandes sambas, os sucessos estrondosos. Quero, aqui, enfatizar a cantora de diferentes “Brasis”. Em rodas de capoeira, por exemplo, encontramos invariavelmente muitos marmanjos suados, desafinados, mas com muita ginga. Dá para imaginar, no meio dos caras, a voz límpida e afinada de Clara Nunes em “Fuzuê”?

“Eh, fuzuê

Parede de barro

Não vai me prender…”

Entrando no que há de mais representativo em Minas Gerais, a cantora da terra entrou de sola na obra de Guimarães Rosa, dá para somar a voz de Clara Nunes e um falar todo sertanejo em “Sagarana”?

“… quem quiser que cante outra

Mas à moda dos gerais

Buriti: rei das veredas

Guimarães: buritizais!”

É fácil pensar em Clara Nunes  entre as maiores cantoras desse país. Dona de uma enorme extensão vocal, ela soube usar esse potencial com um repertório caracterizado pela grande diversidade. Nos discos de Clara Nunes tem fado e rancho; tem jongo, valsa, bolero e… Samba!

Os sambas cantados por Clara Nunes são antológicos. Para voltar às raízes africanas ela foi além da Bahia; foi para Angola, assumindo contas, pulseiras, turbantes e gingado, muito balanço e força rítmica.

Admiro seu jeito mineiro de ser feminista. Criou seu teatro, para ter e propiciar um lugar de trabalho e gostava de ser independente. Teve um olhar atento para compositoras como d. Ivone lara, assim como realizou gravações memoráveis com Clementina De Jesus, juntas homenageando a Menininha Do Gantois.

Pra registrar preferências, tenho duas paixões na voz de Clara Nunes: “Sabiá” (Tom Jobim e Chico Buarque) e “Basta um dia” (da peça Gota D’Água, Chico Buarque e Ruy Guerra). Todas as outras que me perdoem, mas nessas, só ouço a grande cantora mineira.

30 anos sem Clara Nunes. Ficaram os vários discos e a voz inesquecível que Alcione chama de volta, como ninguém:

“Clara

Abre o pano do passado

Tira a preta do serrado

Põe Rei Congo no Gongá

Anda

Canta o samba verdadeiro

Faz o que mandou o mineiro,

Ó mineira!”

Clara Nunes é para ser lembrada; sempre!

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Até!

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Notas Musicais:

Feira de Mangaio – Glorinha Gadelha / Sivuca

Ai, quem me dera! – Vinícius de Moraes

Fuzuê – Romildo S. Bastos/ Toninho

Sagarana – João de Aquino/Paulo César Pinheiro.

Mineira– João Nogueira/Paulo César Pinheiro.