A ilusão da permanência

Encontrando velhos conhecidos são comuns as expressões “você continua o mesmo!”, “Você não mudou nada!” ou similares. Parece-me que a maioria espera que concordemos, que retribuamos com um “você também”. Não é incomum um tom de ressentimento ao afirmarmos que “fulano mudou demais”, “beltrana não é a mesma de antes”. Essas constatações carregam um tom de traição, um sentimento de derrota: “Envelheceu, né!”.

Para com as pessoas públicas costumamos exigir maior permanência. Maria Bethânia diminuiu em muito as corridinhas pelo palco. Ganhou elegância no andar e no gracioso gesto com que reverencia e agradece ao público. Há quem cobre dela os motivos dos fios brancos! Wanderléa, sempre linda, teima em evitar as “provas de fogo” e os “pare o casamento”, cantando Sueli Costa ou gravando chorinhos, o trabalho atual. Os viúvos da Jovem Guarda saem desolados do show. “Wanderléa mudou muito”! É melhor o show de Roberto Carlos, onde “Emoções” não faltarão.

Estranhamento nacional, a postura política da ex-namoradinha do Brasil revelou uma pessoa bem esquisita, traição brutal às personagens meigas e carinhosas de tantas novelas. Ela mantém a postura, o jeito de menear a cabeça, o sorriso aberto, a caricatura que, o tempo clareou, esconde uma mulher bem diferente. Imediatamente passou a ser chamada de velha!  Para alguns, talvez, a suprema ofensa para as mudanças percebidas e a vaidade de Regina Duarte.

Parece que as mudanças não são bem-vindas justamente por nos obrigarem a enfrentarmos as nossas próprias mudanças. Os muitos quilos, as muitas rugas, todos os pelos e cabelos esbranquiçados, a ausência de viço na pele, estão entre as evidências que disfarces, pinturas e maquiagens os mais evidentes só fazem acentuar.

Todo mundo tem espelho e momentos de encarar os efeitos do tempo. A visão cotidiana nos ilude fazendo com que nos sintamos os mesmos, o que não evita nosso espanto quando encaramos fotos antigas que acentuam as mudanças que carregamos, e que caminham, aliadas ao tempo, nos transformando. Infinitamente pior que o espelho são os males que atingem os nossos corpos, incapazes de manter a permanência que mora na nossa vontade. Consultórios e clínicas entram no nosso cotidiano proporcionalmente ao tempo que estamos no planeta. Mais tempo, mais médicos.

Estamos de passagem e a expressão “viagem” ao invés de “morte” é bem melhor. Também há quem prefira “experiente” a “velho”. A realidade, por pior e difícil que possa parecer, é o que temos e, portanto, melhor que a ilusão. Não somos mais os mesmos! Nossos ídolos não são mais os mesmos. Aceitar essa questão é o que nos possibilita maior empatia para com fases da vida de todos – jovens, adultos ou velhos. O que é absurdo é constatar o universo em movimento, as transformações contínuas da natureza e pensar que nos mantivemos imutáveis.  Como se houvesse um dia para tomar consciência de si e fixar tal data. Que bobagem!

P.S. 1 – É óbvio que quem vos escreve já passou dos 60. Gosto de Bethânia desde Carcará, de Roberto, desde O Calhambeque e de Wanderléa, desde O tempo do amor. Assisti quase todas as novelas protagonizadas por Regina Duarte, e atualmente tento esquecer a decepção para não espinafrar a atriz.

P.S. 2 – Acredito estar de passagem e estou lendo textos sobre projeções da consciência. A ideia de experiências fora do corpo físico me atraem cada vez mais. Penso sempre em viagens astrais observando o movimento de nuvens no céu sobre o mar.

P.S. 3 – A decisão em escrever o texto acima foi após ter visto vídeos de fragmentos recuperados da Jovem Guarda. Como Roberto Carlos e Wanderléa mudaram!

Memórias de Assis, o Santo e a Cidade

São Francisco, de Cimabue, em trabalho recriado por João Gilberto Falioni

Um dia estive em Assis. Queria conhecer a cidade do Santo, que conheci melhor e passei a amar depois de ver Irmão Sol, Irmã Lua, o filme de Zeffirelli.  É encantadora a história do jovem que renega os bens (Abaixo o capitalismo!) e abandona o conforto da casa paterna para cuidar dos mais necessitados (de forma similar ao Pe. Lancellotti). Que bom perceber que há “Franciscos” por aí!

No inverno italiano o bicho pega e só por isso recusamos visitar a Ilha de Capri. Água e chuva… Melhor seria ir atrás do sonho e conhecer a cidade do santo. Uma pequena aventura! Por conta do frio as excursões para Assis estavam suspensas e minha irmã Walcenis fazendo a linha “um brasileiro não desiste nunca” decidiu que iríamos de trem. – Qual o problema?

Que tal começar pela Stazione Termini, uma das maiores da Europa? “Íntimos” da cidade, tomamos o TRAM, tipo metrô de superfície, em seguida o metrô que nos deixou na Termini. Acostumados com as pequenas estações da Ferrovia Mogiana, nossa principal referência de viagens de trem, o primeiro susto veio com a quantidade de bilheterias. Se você não pegar uma senha, ninguém te responde e um italiano com frio, talvez por isso com humor gelado, indicou-nos, literalmente, qualquer uma entre as bilheterias. Ok! Solícito, um bilheteiro falou com a velocidade de uma metralhadora giratória. O trem estava de saída, era o único e a plataforma era… Algo para ser descoberto entre 32 plataformas!! Ah! Teríamos uma baldeação em Bérgamo.

Poxa, lá em Uberaba temos uma plataforma. São quatro na nossa querida estação da Luz, aqui em São Paulo. Aquelas centenas de plaquinhas, com dezenas de horários e destinos em cada uma delas, a gente com Assis na cabeça, mas procurando Bérgamo, onde tomaríamos outro trem para nosso destino. Tudo falado entre nós como se estivéssemos em casa! Vamos pegar qualquer fila, atravessar as roletas, sair atrás do trem, vamos perder essa merda… – Eu sei qual a estação. Mostro para vocês, disse uma brasileira sobre quem nada sabemos. Não deu tempo, exceto de agradecer.

Qual trem tomamos? Não sei. Qual o destino desse trem? Quem se importa, desde que ele nos deixasse, como o fez, em Bérgamo? A baldeação foi rápida e, no segundo trem rumo ao nosso destino estava uma australiana. Eu já era rabugento, do tipo não gosto de conversar com estranhos. Walcenis deu papo para, em seguida, ameaçar um bate-boca quando a moça, daqui pra frente nomeada imbecil ignorante disse não saber nada sobre o Brasil. O que é? Onde fica? O que você faz, senão rir, quando uma brasileira irada, minha irmã, resolve mostrar amor pela pátria frente à turista imbecil…

A Toscana é uma região linda até sob intenso frio. A estação de trens fica longe da cidadezinha e, mais um micro-ônibus que – Santa Clara! – começa a caminhar sob chuva. Sob chuva fina, fria, chegamos na cidade que, lamento a comparação, é uma Aparecida do Norte medieval. Ou seja, alguma religião e muito comércio. Todavia, graças a esse fomos atrás de um guarda-chuva. Outra brasileira no pedaço, daquele tipo que viaja para comprar coisas… – Há uma loja ali com preços melhores, nos informou com uma imagem do santo em mãos.

O túmulo de Francisco, circundado pelos túmulos de seus primeiros companheiros de Ordem.

Lembro um antigo templo grego tornado igreja – Santa Maria sopra Minerva – e depois um teatro, com o mesmo nome da praça, “Comune”. A casa onde morou São Francisco, cheia de histórias, precedeu nossa chegada à Basílica de Santa Clara. A santinha não, falhou:

Santa Clara, clareai

São Domingo alumiai

Sai chuva, vem sol

Sai chuva, vem sol…

As clarissas, freiras enclausuradas, herdeiras da missão de Clara, amiga pessoal de Francisco, são silenciosas, delicadas. O corpo da Santa está exposto em urna de vidro em área central da igreja, construída em 1257, com simplicidade que remete ao que ambos os santos pregaram. Ao fundo está a clausura e lá se tem contato com as irmãs, com seus pesados hábitos de inverno. Caminhando lentamente se aproximam perguntando apenas o país de origem do visitante para, em seguida, voltar ao fundo da sala para buscar lembranças gratuitas: “santinhos” impressos na língua do visitante. A tal brasileira, a das compras, estava lá. E perguntou para uma das donas da casa: – Quem é aquela ali na urna?

A Basílica de São Francisco, com duas naves sobrepostas, impressiona bastante. Gosto de pensar que a pintura de Cimabue retrata o santo com “fidelidade” e procurei trazer o máximo possível das imagens de Giotto contando passagens da vida de São Francisco. Contudo, nada impressionou mais que a visita à cripta do grande prédio onde está a tumba do santo e mais, outros quatro túmulos de amigos, primeiros franciscanos: Rufino, Angelo, Masseo e Leone. É poético, mais que qualquer coisa. E talvez por fixar ali os ideais do criador e dos primeiros seguidores da Ordem Franciscana, sente-se uma aura diferenciada, inesquecível.

Dia 4 de outubro. Dia de São Francisco. Bom lembrar e, mais que isso, cabe pensar no que é possível de São Francisco para se viver em nossos dias. Nada muito heroico ou impossível. É, para dizer o mínimo, dar uma força ao Padre Julio Lancellotti, por exemplo. Ou então, ouvir o que o Papa Chiquinho tem pra nos dizer. Não, não é erro nem intimidade forçada. Esse tal Francisco, que está em Roma, é digno representante do Santo e, por isso, lhe cai bem um Chiquinho! Bem carinhoso, como eu gostaria de me dirigir ao Santo, caso tivesse a oportunidade de encontrá-lo.

Boa semana!

Momento de usar a memória

Cresci ouvindo dizer que o Brasil é um país sem memória, sempre achando que este é um argumento frágil. E o tempo vem provando que essa é uma premissa falsa. Um exemplo é Wanderléa cantando “Prova de fogo” ou estrelando comercial da prefeitura de São Paulo com “Pare o casamento”, tentando parar os motoristas amalucados e apressados da cidade. As duas músicas têm no mínimo quatro décadas, já que são da primeira fase da carreira da cantora, comemorando cinqüentenário profissional neste ano (Wanderléa gravou o primeiro disco em 1962).

Outro cinqüentenário é o de Milton Nascimento. O compositor está em turnê com o show Milton Nascimento – 50 Anos de Carreira. No repertório estão clássicos do início da carreira, como “Cais” e “Travessia”, estão ao lado de outras, a maioria da década de 1970, comprovando a longevidade da memória do público quando o assunto é música de qualidade.

Além de considerar a vasta lista de eventos comemorando centenários de ícones (Jorge Amado, Luis Gonzaga, Nelson Rodrigues…) e de outros artistas como Herivelto Martins (1912 – 1992), é possível brincar com outros aspectos da memória nacional: Garrincha e Pelé são eternos ídolos, ao lado de uma galeria imensa de atletas do futebol, do automobilismo, do boxe e de outras categorias esportivas. O brasileiro também lembra heroínas, vilãs televisivas assim como os folhetins que consagraram tais criaturas. Regina Duarte, ao que tudo indica, jamais se livrará do fato de ser a “namoradinha do Brasil”.

Se a memória nacional funciona para tantos fatos, porque temos tantas dificuldades em perceber certas artimanhas políticas? Puxando pela memória é fácil comprovar que já vimos fatos como este, quando D. Dilma promete conta de luz mais barata; também já sabemos que a ética dos nossos políticos permite, por exemplo, que D. Marta apareça na TV apoiando candidato para ganhar ministério. Não é bastante sintomático que a presidenta anuncie redução do preço da energia em período de eleição? E que políticos virem amigos de outros por interesses absolutamente pessoais?

Qualquer pessoa com algumas décadas de vida fará uma considerável lista de falcatruas, promessas vãs, mentiras. Em um dos piores momentos de nossa história, um governo imposto pela força criou um slogan perverso: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Implicitamente levando nossa gente a aturar certos problemas, já que o amor, quando verdadeiro, é incondicional. As grandes decepções com nossos líderes levaram nossa gente a não gostar de política, a ter político como sinônimo de coisa ruim.

Brasileiro gosta de recordar coisas boas. A Jovem Guarda de Wanderléa, o Clube da Esquina de Milton Nascimento… As Copas do Mundo, os campeonatos de automobilismo, as interpretações memoráveis de atores e atrizes nacionais.

Recentemente, inventaram o dito que “brasileiro não desiste nunca”. Gosto de acreditar nisso. Por isso exerço meu direito de não desistir de alimentar idéias sobre políticos honestos, Partidos éticos. Se nós, brasileiros, temos dificuldades em nomear bons políticos; se não há registros em nossa memória de ótimos Partidos políticos, que pelo menos não nos esqueçamos de que é nosso o poder de escolha. E nada melhor do que a memória para conduzir nossa escolha. O melhor critério então é: o que você sabe realmente sobre o candidato que quer o seu voto? Se sua memória falhar, a Internet está aqui .

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Até mais!

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