Ramiro, cadê a nota?

apresentações de ramiro (2)

Por gentileza, prestem atenção na imagem acima. Não é uma imagem deslumbrante e não há os atrativos costumeiros que nos detêm perante objetos, paisagens, animais ou pessoas expostas. Todavia, esse mapa com “bolotinhas” destacadas me é muito caro. As “bolotinhas” indicam todos os locais onde a peça Um Presente Para Ramiro foi apresentada. Desculpem insistir no pedido, mas… atenção: A produção da Kavantan & Associados, patrocinada pela “Visa”, percorreu todas as regiões da capital. Foram cinquenta apresentações na cidade de São Paulo. Também fomos ao Paraná e à Paraíba, fazendo doze apresentações em Maringá e outras doze em Campina Grande.

Fico muito feliz por participar de projetos que, literalmente, vão “aonde o povo está”. E de graça, pois não cobramos ingressos nessas apresentações. O mapa acima facilita dimensionar corretamente as distâncias que, em conjunto, tiveram um invariável ponto de partida: a estação de Metrô Paraíso. Volta e meia entrava um recado da produção para o grupo do Ramiro informando horários de saída; teve saída às 9h30, às 11h00, às 6h00 e todo um monte de observações necessárias em meio a piadas do pessoal. Relacionamento criado e amadurecido ao longo de muito tempo.

Para quem não está habituado com todo o processo de uma montagem teatral é bom pontuar: levamos uma ideia ao possível patrocinador, e esta, quando aprovada,  vem a se concretizar em texto teatral. Tudo muito pé no chão, baseando-se em objetivos práticos e em verbas realistas. Aprovada ideia e sinopse, o passo seguinte é solitário, do autor: O cara escreve, re-escreve, discute, escreve novamente e após aprovação começam os trabalhos de produção.

Segunda grande fase da produção é feita por um bando de gente: os que estarão no palco e os que trabalharão para que tudo fique da melhor maneira possível em todas as fases e em cada apresentação. Atores, diretores, músicos, figurinistas, cenógrafos e todo o pessoal da produção. Uns criam, outros viabilizam, outros concretizam e em dois, três meses de trabalho árduo, chegam as apresentações. A estreia de Um Presente Para Ramiro foi em Sapopemba, na Zona Leste da capital paulista, em outubro de 2018, e essa primeira temporada foi encerrada no Tendal da Lapa, em novembro de 2019.

A última etapa, e tão importante quanto as outras, é a da prestação de contas. Fase pouco noticiada, mas de suma importância para quem produz com dinheiro advindo de Lei de Incentivo Fiscal via patrocínio da VISA. Eita! É a tal Rouanet mesmo! A lei que recebeu muitas críticas nos últimos tempos e que exige um MINUCIOSO ACERTO DE CONTAS! Assim mesmo, com todas as maiúsculas, para possíveis detratores de plantão. Além de critérios rígidos para aprovação de um projeto, a Lei prevê e exige informações documentadas sobre o destino de cada centavo. Essa prestação de contas também carece da aprovação final dos técnicos do Governo.

Fala-se muito contra a Lei Rouanet. Vivemos em tempos obscuros em que a informação, rasteira ou mesmo falsa, vai de pessoa a pessoa, de grupo a grupo. Por exemplo, costumam afirmar que o dinheiro da lei beneficia apenas gente famosa. Bom, como bem sabem, não sou famoso, assim como a maioria dos profissionais com os quais trabalho. Somos sim, conhecidos e respeitados no meio em que atuamos. Damos um duro danado para isso, incluindo uma precisa e correta prestação de contas em nossas ações.
Quietinhos lá no escritório, contabilizando cada etapa, é o único momento em que nós, os outros participantes desse trabalho, não ouvimos expressões do tipo “peça a nota”, “tem que ter nota”, “não esqueça a nota”, “só se for com nota”… NOTA FISCAL. Taxi, refeições, ensaios, tecidos, aviamentos, recibos do trabalho feito por cada profissional, divulgação, transporte, hospedagem… nada fica sem a tal nota. Respeito e tenho orgulho de atuar ao lado desses profissionais, “minha produção”. É por ser exigente e séria que Sonia Kavantan e equipe têm parcerias com empresas diversas, parceiras em nossas montagens.

Nunca li nenhuma reportagem sobre esse aspecto da Rouanet, do minucioso acerto de contas que se exige das produções. Seria bom que as pessoas atentassem para esse acerto. Não discuto as possíveis mudanças, os melhoramentos necessários da Rouanet. Toda e qualquer lei carece de ser vista como algo em movimento, em conformidade com os padadigmas da sociedade, das mudanças e transformações da mesma. Isso evitaria discussões inúteis, baseadas em informações advindas de fontes duvidosas.

Até mais!

Ramiro! Um garoto na contramão.

 

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Neusa de Souza, Roberto Arduin, Conrado Sardinha, Rogério Barsan e Isadora Petrin. Foto: João Caldas

Gente de teatro é meio louca, dizem. Vai ver têm razão, já que é preciso uma boa dose de insanidade para estrear uma peça infantil anticonsumo no Dia da Criança. Faz um ano que Ramiro iniciou sua trajetória por palcos da capital paulista tendo realizado temporadas também em Maringá, no Paraná e em Campina Grande, na Paraíba. Faz um ano que estreamos oficialmente no bairro Sapopemba, no dia da criança, em um projeto de educação financeira visando ensinar crianças e seus responsáveis a administrar o suado dinheirinho que entra com dificuldade e sai feito água no ralo.

Ramiro, o garoto que criei, quer o mundo em forma de brinquedos. E a peça gira em torno do fato de que a vida não é bem assim. Um ano depois e Ramiro continua nos palcos paulistanos. Certamente transformado via uma mudança aqui, um corte ali, sem contar o próprio amadurecimento de cada ator no domínio do ofício que burila e descobre nuances em personagens e cenas. Mas é dia de aniversário de Ramiro, o menino quer presentes – o que leva a personagem a ter identificação com o público infantil – e as demais personagens vão brincar e tentar ensinar ao garoto a necessidade de economizar, investir, planejar…

Pensar que o Dia da Criança surgiu por vontade de um político, por volta de 1920, me faz pensar em apelação ordinária, em busca de votos via sentimentalismo barato. A data adquiriu sua sina consumista pela ação de duas empresas, uma indústria de brinquedos e outra com forte linha de produtos infantis. Vamos vender muito em todos os 12 de outubro e deixar para novembro, dia 20 para ser preciso, a reflexão sobre a Declaração Universal dos Direitos da Criança, data que lembra o dia em que a Unicef proclamou os tais direitos infantis.

Ramiro tem direitos e alguns deveres também. O mais difícil provavelmente é aprender a conter a ambição em ter tudo, redescobrir o lado bom de brinquedos simples, valorizar as relações de amizade e parentesco. As reações são diversas e normalmente a plateia infantil se mostra inquieta. Coloque-se no lugar de quem quer o máximo do que o mercado oferece e assiste um trabalho que prega contenção de gastos… Trabalho difícil, mas que nosso pessoal vem defendendo com raça e brilho.

Neusa de Souza, Roberto Arduin e Rogério Barsan trazem o lúdico para a cena, jogando com elementos simples que transformam ambientes e situações. Suas personagens conduzem a ação e são responsáveis pelo desenvolvimento da peça. Isadora Petrim faz afetivo contraponto ao primo, brincando de ser a prima mais amadurecida, companheira no crescimento do primo. Conrado Sardinha é o garoto Ramiro, fazendo este de tal maneira que encanta e ganha a cumplicidade da plateia.

Nossa Produtora Sonia Kavantan nos propiciou a música de Flávio Monteiro, os cenários de Djair Guilherme, os figurinos e adereços de Márcio Araújo, as fotos de João Caldas, a identidade visual criada por Fernando Moser com  ilustrações de Octavio Cariello, a assistência de Milka Master e Lilian Takara. Companheiros do elenco em toda a jornada, Tiago Barizon administra, William Gutierrez opera som e André Persant faz a luz, criada por Ricardo Bueno. Realização da Kavantan Projetos e Eventos Culturais, com patrocínio da VISA e da Lei de Incentivo à Cultura.

Hoje não há bolo de aniversário, nem salgadinhos, docinhos, refrigerantes. Há meu carinho, imenso, por toda essa gente que vem trabalhando nessa montagem. E muita gratidão. A mensagem de “Um Presente Para Ramiro” é uma minúscula gota na contramão do consumo desejado pelo mundo capitalista. Mas somos gente de teatro e por isso insistimos. E não desistiremos nunca!

Até mais!

VANDRÉ, PRA NÃO ESQUECER QUE TIVEMOS DITADURA.

geraldo vandré

Vim de longe, vou mais longe
Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta pra junto a gente cobrar
No dia que já vem vindo que esse mundo vai virar…(1)

Há muita coisa por ser revelada desse triste período da nossa história… 1964! E quem está interessado em dizer que a “ditadura foi boa para o país” só pode querer minimizar culpas, receando cobranças sobre responsabilidades ou… demonstrar imensa ignorância e desconhecimento da história.

Recordo-me vagamente desse distante 1964. Depois soube de conhecidos presos, um tio de outro vizinho desaparecido e a irmã de uma grande amiga, escondida dentro de casa. Mas eu era criança e certamente aproveitei bem aqueles dias.

Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando, e canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar… (2)

Seria bom perguntar para milhares de famílias cujos parentes, filhos, foram torturados, mortos, o que eles acham dessa tal “ditabranda”.

Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão,
Eu venho lá do sertão,
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar…(3)

A vida de Geraldo Vandré, após a ditadura, já virou folclore. É certo que foi exilado e saiu daqui para o Chile, e de lá também teve que sair, indo para a Argélia, a República Federal da Alemanha, Grécia, Áustria, Bulgária, Itália, França… Mas Geraldo Vandré também foi intérprete, grande intérprete.

Eu sem você não tenho porquê
Porque sem você não sei nem chorar
Sou chama sem luz, jardim sem luar
Luar sem amor, amor sem se dar… (4)

O compositor, enquanto porta-voz de sua gente, cabra-macho da Paraíba, não teve medo de chamar para a briga quando sentiu necessidade.

Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos, de armas nas mãos
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão… (5)

Deixando-nos um convite irrecusável:

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer… (6)

Geraldo Vandré, provocando, fazendo acender a luz da incerteza, da desconfiança, abriu caminho para o conhecimento do que estava realmente ocorrendo.

Vida que não tem valor
Homem que não sabe dar
Deus que se descuide dele
Jeito a gente ajeita
Dele se acabar.
Fica mal com Deus… (7)

História pra ser vivida, pra ser lembrada. Tivemos uma ditadura. Conheçamos as consequências disto para que possamos tomar todas as medidas necessárias para que não se repita.

Até!

Nota – As músicas citadas acima são:
1 – Arueira –Geraldo Vandré
2 – Porta Estandarte – Geraldo Vandré e Fernando Lona
3 – Disparada– Geraldo Vandré e Théo de Barros
4 – Samba em Prelúdio – Baden Powell e Vinícius de Moraes
5 e 6 – Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores – Geraldo Vandré
7 – Fica Mal Com Deus – Geraldo Vandré