D. Rosita e outras Nicettes

Dona Rosita, a Solteira

O primeiro e único amor de Rosita é um primo. Criada carinhosamente pelos tios, a jovem cuida do enxoval enquanto o noivo viaja a trabalho, prometendo breve retorno. O tempo passando, as pessoas envelhecendo, morrendo e Rosita permanece cuidando do enxoval enquanto recebe cartas e promessas de um retorno. Depois de anos de espera chega a notícia de que ele estava casado, que enviava cartas por não ter coragem de contar a verdade. “Eu sabia de tudo”, afirma Rosita. Se não houvessem contado, ela viveria sua ilusão como quando jovem.

“Dona Rosita, a Solteira”, de Gabriel Garcia Lorca, traduzida por Carlos Drummond de Andrade e dirigida por Antônio Abujamra, estava em cartaz em 1980, quando ainda inseguro insistia na minha trajetória paulistana. Grandes e belos outdoors enfeitavam alguns pontos da cidade com Nicette Bruno em destaque em um elenco que ainda contava com Márcia Real, Vic Militello e Paulo Goulart. Ver Nicette era confortante. Tornava familiar a cidade imensa, desconhecida para o jovem migrante que eu fui.

Uma colega de Nicette, Arlete Montenegro estava em cartaz em um antigo teatro na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, onde hoje está o Teatro Bibi Ferreira. As duas eram minhas conhecidas desde quando, lá em Uberaba, assisti à primeira versão de A Muralha, na extinta TV Excelsior. Em um teatro maior, em frente ao que Arlete trabalhava, estava Paulo Autran, primeiro com Eva Wilma e depois com Irene Ravache. A peça era “Pato com Laranja”. Não vi nenhuma dessas peças. Eu era migrante, procurando emprego, dinheiro contado. Assisti sim, inúmeras vezes, no Teatro Popular do Sesi, a montagem de “A Falecida”, com Nise Silva transitando em cenário de Flávio Império, sob direção de Osmar Rodrigues Cruz. Tempos de sonho!

A família Goulart concretiza o que muita gente sonha: ser uma família teatral. Costumamos tratar nossos colegas de elenco como “família” e ver os Goulart era muito reconfortante. Parentes em cena não é tão incomum. Marília Pera ao lado do filho, da mãe ou da irmã; Fernanda Montenegro com a filha, Fernanda Torres, estão entre exemplos de pessoas da mesma família que presenciei em montagens memoráveis. Os Goulart diferiam, diferem, dos demais por questões simples, mas profundamente significativas:

Fui convidado pelo autor e diretor Gerald Thomas para a estreia de “Eletra Com Creta”. Beth Goulart estava no elenco. Quando chegamos ao Teatro Sesc Consolação nos deparamos com o casal Nicette e Paulo, em local estratégico entre o hall de entrada e o passeio, recebendo efusiva e carinhosamente a todos. Algo tipo “Que bom que vocês vieram ver nossa filha! A peça é ótima, o elenco maravilhoso”. A diferença, para deixar bem claro, é que o teatro era a casa deles. Todo e qualquer teatro. E recebiam, para uma peça alheia, mas que era da família.

Paulo Goulart, Paulo, Bárbara, Beth e Nicette. Família!

Quero registrar dois momentos incríveis do teatro de Nicette Bruno. Em “Somos Irmãs”, ao lado de Suely Franco e também da filha Beth Goulart, em peça de Sandra Louzada, direção de Cininha de Paula e Ney Matogrosso, sobre a vida das irmãs Batista, Linda e Dircinha. Nicette e Suely faziam as duas cantoras envelhecidas, decadentes, revendo suas vidas quando foram as Rainhas do Rádio, em cena interpretadas por Beth Goulart e Cláudia Neto. Atrizes e cantoras excepcionais, Beth e Claudia enfrentaram na apresentação em que estive a um público quieto, aparentemente frio. Houve momentos em que, empolgado, aplaudi, mas o plateia não acompanhou. Percebi, em dado momento, Suely Franco estranhando a frieza da plateia. Nicette seguiu a cena e toda a peça com o talento que a consagrou. Ao final, a plateia explodiu em demorados aplausos. As duas veteranas atrizes se entreolharam e percebi, em Nicette, algo do tipo “eles são apenas quietos”.

Em “O Que Terá Acontecido a Baby Jane”, roteiro original de Henry Farrel adaptado para teatro por Charles Moeller que, ao lado de Claudio Botelho, dirigiu Eva Wilma e Nicette Bruno em 2016. Duas mulheres vivendo situações tensas na história que, em filme de 1962, marcou um encontro nas carreiras de Bette Davis e Joan Crawford.

Aos 83 anos (2016!) as duas atrizes fizeram um momento memorável. Nicette, presa a uma carreira de rodas, sob os desvarios da Jane de Eva Wilma. Sem cortes, sem truques. Duas atrizes com a experiência e a tarimba que as tornaram amadas por todos nós.

Nesse domingo, dia 20, nos entristecemos com o falecimento de Nicette Bruno. A tragédia trazida pelo Covid segue enquanto aguardamos uma vacina. A carreira de Nicette e a imagem marcante da atriz, mãe, dominou o noticiário.  Os filhos Beth, Paulo e Barbara Bruno agradeceram o abraço que sentem de todos nós, que fizemos isso antes, por ocasião do falecimento de Paulo Goulart. Triste.

Fiquei pensando em Dona Rosita, a primeira imagem paulistana em que Nicette Bruno me trouxe ao chegar na cidade. Uma amiga, uma mãe. Sobretudo, acima de tudo, uma grande atriz!

O Museu do Theatro Municipal sintetiza a cultura paulistana

Em tempos de chuva, uma tarde ou manhã no museu é garantia de passeio tranqüilo e divertido. De quebra, aprende-se muito. Sob o Viaduto do Chá há, por enquanto, duas instituições fundamentais para a vida cultural de São Paulo: a Escola Municipal de Bailados e o Museu do Theatro Municipal. Por enquanto, pois logo estarão em outro espaço, em construção, no Vale do Anhangabaú. Uma dica para o final de semana: conhecer ou visitar o Museu do Theatro Municipal.

A atual exposição, “Museu do Theatro Municipal Ícone e Memória”, possibilita uma ampla viagem. Há a lembrança de eventos como a “Semana de 1922” e de grandes montagens e apresentações marcantes de companhias nacionais e estrangeiras. A mostra evidencia, através de painéis e de objetos pertinentes ao universo do espetáculo cênico, a história da cultura paulistana pelos mais de 100 anos da história do principal teatro da cidade.

As visitas ao museu podem ser feitas de terça a domingo, das 10h às 18h e o espaço ainda oferece a oportunidade para pesquisadores, de terça a sexta, das 10h às 17h. Procurei sintetizar em imagens os principais itens da exposição em cartaz. Um estímulo e um convite para este mês de férias.

Começando pela música, forma artística primordial na história do Theatro Municipal. A ópera é reverenciada com fotos dos principais cantores líricos que se apresentaram no palco do Municipal. Também maestros, instrumentistas diversos, orquestras e cantores de jazz estão presentes.

Uma síntese dos principais itens pertinentes à ópera pode ser lida, em pequeno glossário exposto. Há também grandes vitrines com croquis de vestuários feitos especialmente para as montagens da casa; além das próprias peças confeccionadas, há  adereços diversos que evidenciam o trabalho cuidadoso de profissionais que atuam nos bastidores dos grandes espetáculos.

De um espetáculo teatral, uma ópera ou um balé participam iluminadores, engenheiros de som, arquitetos e cenógrafos, além de muitos outros, conforme a necessidade da montagem em questão. Assim, outros grandes expoentes da arte brasileira estão presentes, como exemplo, nas maquetes que estão na exposição: as cores empregadas pelo cenógrafo Carlos Jacchieri, na ópera Werther, de Massenet, contrastam com a obra limpa da pintora Tomie Othake, descrita abaixo.

O balé é outra forma com participação marcante na história do Municipal. A Escola Municipal de bailados surgiu para garantir a presença de bailarinos acompanhando os espetáculos de grandes estrelas. Hoje, o Municipal tem corpo estável de baile, ou seja, companhias com vida própria, trabalho criativo. Pelo palco paulistano passaram as maiores estrelas do balé mundial.

Vitrines com os principais cartazes criados para os eventos produzidos, ou apresentados no Municipal permitem a avaliação dos avanços e das transformações do design nos últimos cem anos. Nestes também a presença de trabalhos realizados por grandes artistas gráficos ou outros, pintores, que deixaram seu talento registrado em produções do Theatro Municipal.

Finalmente, mas não menos importante, o teatro em si. A exposição “Museu do Theatro Municipal Ícone e Memória” reverencia os maiores nomes do teatro brasileiro. Procópio Ferreira, Itália Fausta, Fernanda Montenegro, Paulo Autran e Maria Della Costa estão entre os grandes ícones do teatro brasileiro. Há lembranças da passagem de astros estrangeiros como Vivien Leigh, que prestigiaram o palco da cidade.

A exposição está aí. Visite antes que acabe. O museu tem previsão de ser fechado no final do mês, quando será transferido para uma única sala, segundo informou uma funcionária da instituição: “O prefeito Kassab está acabando com tudo; o museu ficará em um espaço mínimo e certamente não teremos exposições como esta.”

O museu aguarda sua visita!

Bom final de semana.

Nota: As fotos originais tem seus respectivos autores; aqui, realizei montagens fotografando os painéis expostos, além de registrar algumas imagens do local.

Teatros do Bexiga em uma caminhada

O Bexiga tem tanta história! Um levantamento afetivo, resultado de uma caminhada com objetivos. Não sei ir por aí, feito alma penada. Resolvi caminhar pelos teatros próximos da minha casa (Tenho sorte, graças a Deus!) e quem quiser o roteiro real, posso até fornecer. O roteiro afetivo começa pelo TBC, o primeiro que fotografei.

Resultado da legislação que limpou a cidade, proibindo os grandes e exagerados cartazes, outro dia percebi o quanto é bonita a arquitetura do Teatro Brasileiro de Comédia. Fundado em 1948 por Franco Zampari, foi templo de Cacilda Becker e Fernanda Montenegro. O contraste entre diferentes épocas é próprio do bairro; por isso escolhi o Teatro Ruth Escobar para figurar ao lado do TBC. A atriz e empresária Ruth Escobar levantou grana com seus patrícios portugueses para construir o local, que é um verdadeiro Centro Cultural.

Quando cheguei por aqui… bem, são os teatros da Avenida Brigadeiro Luiz Antonio que marcam o período em que passei a morar em São Paulo. Era o final dos anos 70. O atual Teatro Bibi Ferreira tinha um outro nome; no jardim, recordo bem, dois cartazes enormes com fotos de Arlete Montenegro e Carlos Arena. Não vi o espetáculo. Era mais um migrante procurando emprego e tentando sobreviver na megalópole.

No Teatro Brigadeiro, que já foi Teatro Jardel Filho, no mesmo período, Paulo Autran estava em cartaz ao lado de Eva Wilma. A peça era “Pato com Laranja”. Também foi depois que vim a conhecer esses dois grandes atores. No Ágora, que já foi o Teatro do Bexiga, fiz uma entrevista com Caíque Ferreira, quando o falecido ator encenou Giovanni, um clássico de James Baldwin.

O Teatro Abril, que com o nome Paramount foi um marco da nossa televisão, especialmente os históricos programas da TV Record, conheci como cinema. Hoje, no Teatro Abril, são apresentados grandes musicais internacionais e é por esses e outros que chamam o Bexiga de Broadway brasileira.

A Broadway, ao que tudo indica, tem muito dinheiro. Por aqui, ele não sobra. Vide o Teatro Imprensa! E é a mesma crise que levou à escassez de espetáculos no Teatro Mars, onde Ulisses Cruz fez uma montagem genial de “Pantaleão e as visitadoras”. Nem tudo é crise; pelo menos houve dinheiro para reformar o Teatro Sergio Cardoso onde, atualmente, Glória Menezes está em cartaz com a peça “Ensina-me a viver”. Todavia quero registrar que foi neste teatro que vi, pela primeira vez, o Stuttgart Ballet. Inesquecível o som das sapatilhas dos bailarinos, em inusitada percussão paralela ao som vindo da orquestra.

Há outros teatros no Bairro, nas adjacências, na vizinhança. Os que estão por aqui foram registrados em uma caminhada. Sobe morro, desce morro, caminha, caminha, caminha… quem sabe o corpo entra em forma! Outras tardes de exercício físico virão e, maquininha em punho, farei outros registros. Quero finalizar este com o Teatro Oficina.

O Teatro Oficina está completando 50 anos. O diretor José Celso Martinez Corrêa é a grande figura do local. Atualmente os artistas do Oficina realizam uma “Macumba antropófaga”, continuando a histórica trajetória de resistência do Teatro. O atual trabalho é  homenagem a Oswald de Andrade e  comemora o aniversário do grupo Uzyna Uzona, responsável pelos trabalhos do Oficina.

Só para esclarecer, pois a história é longa, minha participação no teatro foi com uma peça que escrevi e dirigi, chamada “Os Pintores”, encenada por um grupo de operários de Santo André, no ABC Paulista. Foi uma única apresentação. Para nós, naquele momento, uma grande vitória. Fazendo o caminho inverso, sentimo-nos Bandeirantes invadindo a cidade.

Até sexta!