E, no entanto, é preciso cantar!

De todas, parece que esta será a mais cinza entre as quartas-feiras de cinzas. E que o dia se justifique conforme sua razão de existir: um marco para a mudança de vida. As chances de mudança são, infelizmente, muito poucas. Nem o carnaval aconteceu da forma que nos habituamos a cantar o primeiro verso da canção de Vinícius de Moraes: “acabou nosso carnaval…”.

Assim como 1º de janeiro se torna irrelevante quando constatamos que a mudança de ano não muda nada, a Quarta-Feira de Cinzas de 2021 tende a celebrar tão somente a fragilidade humana, a vida efêmera tirada das 1.100 vítimas mortas cotidianamente pelo COVID. Esse média, horrorosa, não converte ninguém, não muda comportamento de ninguém.

… Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça…

Nessa quarta-feira aqueles que se recusam a usar máscara continuarão assim, favorecendo a circulação do vírus. E justificarão sua atitude baseadas em disse-me-disse doméstico no WhatsApp, o espaço de fofoca da era virtual. Esse mesmo espaço onde irão circular vídeos de “profissionais” (entre aspas, pois são assassinos) que fingem vacinar idosos. E entre um copo de cerveja e outro, nas esquinas de São Paulo e de outras cidades, discutirão acaloradamente os destinos dos participantes do BBB e, entre um “Vai, Corinthians!” e outro “O Palmeiras não tem mundial!”, seguirão a vida rumo à Pascoa, período que deveria ser de excelência em mudanças, mas que será mais um marco do mesmo.

Tenho refletido sobre o que poderia vir a sensibilizar as pessoas. Nosso país tem absurdos tais em que o governo oferece via comercial de TV um curso de educação “baseado na ciência”. E ante a angustiante falta de vacina, o contraponto é a liberação da compra de seis, SEIS, armas de fogo por pessoa. A mensagem sugerida é a de que quem pode comprar mata quem não pode? No mínimo domina e faz calar a boca.

…Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais…

É complicado viver com o inimigo logo ali, além da porta. Está no outro e, na impossibilidade de detecção, todos os outros são os portadores do vírus que mata. Há sobreviventes, dizem alguns. Mas, como saber que estaremos entre os sortudos? A presença de uma vacina à conta-gotas faz aumentar a ansiedade entre a perspectiva de fim de prisão e o receio de morrer na praia, olhando o calendário e contando os dias que faltam para chegar a nossa vez: de morrer ou de nos vacinarmos.

E, no entanto, é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade…

A gente vive não só de teimosia, mas da lembrança do olhar de mães que nos disseram que estava tudo bem, da segurança que nossos pais nos transmitiam guiando-nos nas travessias perigosas. Esses seres humanos que nos ensinaram a confiar na justiça divina, seja via Deus dos Hebreus, seja via Xangô ou a Lei do Retorno. No merecimento de uma vida melhor, conforme o que cada religião prega. E, ante o desconhecido e a incerteza do que nos virá, melhor é ficar por aqui, com nossos irmãos, com nossos amigos. E é por isso, talvez, que a gente luta e não desiste.

A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir
Voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar…

Ano passado, ingenuamente, pensamos ser breve os anunciados quinze dias de uma quarentena que permanece. Agora temos a vacina em andamento e espero que todos tenhamos o direito de tê-la em nossos corpos, que é o que realmente interessa. Talvez, essa quarta-feira, esse período de quarentena que antecede a Páscoa, seja realmente a passagem para um mundo sem medo. Então, certamente lembraremos desta como a mais cinza, entre as quartas-feiras de cinza que, graças aos céus, aos santos, aos deuses, aos orixás… virou cinzas, ficou no passado.

Notas:

A foto acima foi feita em Recife, o mestre Luiz Gonzaga na praça.

A Marcha da Quarta-Feira de Cinzas é música de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Ouça a canção! É linda e cheia de esperança. A gravação que escolhi é de Elis Regina, na primeira fase de sua carreira, no Fino da Bossa.

Avigrama Para Vinícius

Vinícius-de-Moraes

“Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi: 
Não sei”.

Tive a ilusão de sermos um

A origem sendo não mais que geografia.

No entanto quem, quantos somos?

E quanta diferença há entre nós!

Reconhecendo lutas separatistas,

– São só interesses financeiros!

Não mensurava a própria ingenuidade.

“Tenho-te no entanto em mim como um gemido 
De flor”;

 Vejo-te árvore imensa que abastece,

Propicia sombra reflorescendo sempre.

Sinto-nos frutos similares,

Em todas as fases desses

Às vezes amargos, outras vezes doces,

E desprendidos de seus galhos

Voltamos à terra e renascemos

Filhos da mesma árvore,

Componentes da mesma floresta

Habitando serrado ou caatinga

Redivivos em restingas, pantanais.

 “Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta 
Lábaro não; a minha pátria é desolação “

Durmo pensando-te pátria amada,

A patriazinha do poeta

Que sabia não seres mãe gentil.

Receio ainda manter a ingenuidade…

Sobretudo, por ter aprendido a amar-te,

Insisto na esperança

Acredito no amanhecer límpido

Abrindo caminhos retos

Levando-nos a porto seguro.

Sonho, um dia, o país Brasil.

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Valdo Resende, 30/05/2018

Um Sábado com Domingo no Parque

Pura emoção: junto à Orquestra de Câmara da ECA/USP, com arranjos e regência do Maestro Gil Jardim, Gilberto Gil canta Domingo no Parque. Suavemente os sons invadem a Sala São Paulo e dou-me conta de ser esta a primeira vez que ouço ao vivo a música, originalmente apresentada no Festival da Record de 1967. O choro vem fácil e sinto o apoio que vem da amiga que me propiciou tal evento. Careço de outra canção pra sintetizar esse momento: “Tudo ainda é tal e qual e, no entanto, nada é igual” diz a letra de Caetano Veloso em “Os mais doces bárbaros”.

Tal e qual é a beleza de Domingo no Parque na voz madura e segura de seu criador. João, José e Juliana estão em um parque, onde o triangulo amoroso será desfeito tragicamente. As frases melódicas são precisas e realçam a história ocorrida em algum domingo, no parque de diversões onde a roda gigante gira, feito a roda do destino. Os versos evocam imagens com a precisão da poesia. O fim é, infelizmente, comum ainda hoje: resolvido com a lâmina de uma faca.

Gil e os mutantes
Gilberto Gil e Os Mutantes, em 1967

Nada igual! Não estavam lá Os Mutantes fazendo coro com Gilberto Gil. E o novo arranjo, embora belíssimo, continua fazendo lembrar e reverenciar o original de Rogério Duprat. Um encontro impossível com a morte de Duprat, em 2006, e com os rumos sem retorno dos irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Batista, cada vez mais distantes de Rita Lee. No entanto… Criador e criatura! Gilberto Gil é um dos máximos compositores que somam letra e música com beleza e emoção. E há mais: o cantor! Dono de um timbre inequívoco, a voz conhecida de décadas está ali, fazendo a emoção atingir altíssimos graus.

Gilberto Gil brilhou em noite que estiveram presentes a cantora Vanessa Moreno com Fi Maróstica, e a fadista Carminho, duas mulheres extraordinárias. O Concerto Letras de Luz, no Dia Internacional da Língua Portuguesa comemorou o 10º aniversário do Instituto EDP, encarregado de ações socioculturais do Grupo EDP, que tem origem em Portugal.

Gil e os demais artistas
Gilberto Gil, Carminho, Vanessa Moreno e Fi Maróstica, e o maestro Gil Jardim, os artistas do Concerto Letras de Luz

A voz de Vanessa Moreno surpreendeu ao cantar Expresso 2222 e Carminho, lembrando Amália Rodrigues com Saudades do Brasil em Portugal, de Vinícius de Moraes, segue a tradição das grandes cantoras portuguesas. A Orquestra de Câmara da ECA/USP fez um memorável O Trenzinho Caipira, de Villa-Lobos. O final do show reuniu todos os artistas presentes que fizeram o bis com Panis et Circenses e, novamente emocionaram, em interpretação que lembrou Os Mutantes e a Tropicália.

Foi um sábado feliz. Com Vinho do Porto, Pastel de Belém, alguns amigos e a companhia pra lá de especial da Sonia Kavantan (Obrigado, Sonia! Obrigado EDP!). Tudo muito bom!

Já na Bela Vista quando desci do carro da minha amiga, enquanto caminhava solitário na rua deserta, madrugada de domingo, pensei em Gil, na Ribeira que vi de passagem, lá em Salvador, no parque de diversões do meu pai e da canção, que tive o privilégio de ouvir…

Olha o sangue na mão (ê, José)

Juliana no chão (ê, José)

Outro corpo caído (ê, José)

Seu amigo João (ê, José)

Amanhã não tem feira (ê, José)

Não tem mais construção (ê, João)

Não tem mais brincadeira (ê, José)

Não tem mais confusão (ê, João).

Boa semana para todos!

Ah! Para rever Domingo no Parque no Festival da Record:

 

Até!

Entre Jeanne e Brigitte

jeanne e brigitte.jpg
Jeanne Moreau e Brigitte Bardot em “Viva Maria!”

E lá se foi Jeanne Moreau. Com seu rosto doce, grandes e expressivos olhos. “Uma Mulher Para Dois”, “A Noite”, lembranças de filmes dos anos de 1960. Acompanhava minha irmã Waldenia em cineclubes e fiquei impressionado com a moça francesa, a atriz talentosa. Todavia, eu era criança. E havia Brigitte Bardot, com pseudo ingenuidade em corpo deslumbrante. Havia o sorriso de Brigitte, seus olhos brilhantes, os cabelos loiros…

Não havia grandes problemas, mas para os radicalismos da juventude, o incômodo era considerável. Em terras tupiniquins eu também me dividia entre Elis Regina e Wanderléa. Para algumas cabeças isso era quase impossível. Eu resolvera o impasse, temporariamente, via astrologia onde, dizem, os do signo de gêmeos gostam de “todo o mundo”. Não era bem assim; eu tinha meus desafetos e, hábito desde então nem vou citá-los, mantendo-os no devido limbo.

Mais que bonita, Jeanne Moreau foi uma mulher forte. Dessas atrizes marcantes ao darem vida a personagens que retratam uma época, refletem mudanças e transformações consideráveis como, por exemplo, nos filmes “Duas Almas em Suplício” ou então em “Jules e Jim”. Brigitte, por sua vez, foi um grande símbolo sexual, o que por si, para a época, já se constitui em marco considerável. Encantou meio mundo em “E Deus Criou a Mulher” e marcou, ao lado de Marcelo Mastroianni, em “Vidas Privadas”.

Um dia chegou a notícia de um filme com as duas francesas. Já chegou com o rótulo de golpe comercial, visando grandes bilheterias. O roteiro é uma brincadeira onde duas Marias tornam-se grande atração de um circo ao, “acidentalmente”, inventarem o strip-tease e, de sobra, tornando-se líderes revolucionárias… Um grande sucesso onde as moças esbanjam beleza, simpatia e talento, com ambas concorrendo a prêmios de melhor atriz pelo filme.

Nunca soube se foram amigas. Brigitte deixou de ser atriz e tornou-se ativista em prol dos animais. Jeanne, na década seguinte, veio ao Brasil para filmar com Cacá Diegues. Fez Joanna Francesa, cantando no filme a música de Chico Buarque. E pra continuar firme em meu coração compareceu, nos anos de 1980, em disco de Maria Bethânia declamando “Poema dos olhos da amada” (Vinicius de Moraes e Paulo Soledade).

E lá se foi Jeanne Moreau. Morte sentida como a de grandes amigos distanciados no tempo e na geografia, mas nem por isso menos considerados. Jeanne foi uma atriz; uma grande atriz! E gostando de Jeanne e Brigitte aprendi a distinguir atriz de estrela. Brigitte, mais que atriz, foi uma grande estrela. Daquele tipo de estrela que não precisa de filme pra ser lembrada. Jeanne, além da beleza, será lembrada também pelos filmes, pelas canções, pelo trabalho cuidadoso. Que descanse em paz!

Até mais!

VANDRÉ, PRA NÃO ESQUECER QUE TIVEMOS DITADURA.

geraldo vandré

Vim de longe, vou mais longe
Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta pra junto a gente cobrar
No dia que já vem vindo que esse mundo vai virar…(1)

Há muita coisa por ser revelada desse triste período da nossa história… 1964! E quem está interessado em dizer que a “ditadura foi boa para o país” só pode querer minimizar culpas, receando cobranças sobre responsabilidades ou… demonstrar imensa ignorância e desconhecimento da história.

Recordo-me vagamente desse distante 1964. Depois soube de conhecidos presos, um tio de outro vizinho desaparecido e a irmã de uma grande amiga, escondida dentro de casa. Mas eu era criança e certamente aproveitei bem aqueles dias.

Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando, e canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar… (2)

Seria bom perguntar para milhares de famílias cujos parentes, filhos, foram torturados, mortos, o que eles acham dessa tal “ditabranda”.

Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão,
Eu venho lá do sertão,
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar…(3)

A vida de Geraldo Vandré, após a ditadura, já virou folclore. É certo que foi exilado e saiu daqui para o Chile, e de lá também teve que sair, indo para a Argélia, a República Federal da Alemanha, Grécia, Áustria, Bulgária, Itália, França… Mas Geraldo Vandré também foi intérprete, grande intérprete.

Eu sem você não tenho porquê
Porque sem você não sei nem chorar
Sou chama sem luz, jardim sem luar
Luar sem amor, amor sem se dar… (4)

O compositor, enquanto porta-voz de sua gente, cabra-macho da Paraíba, não teve medo de chamar para a briga quando sentiu necessidade.

Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos, de armas nas mãos
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão… (5)

Deixando-nos um convite irrecusável:

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer… (6)

Geraldo Vandré, provocando, fazendo acender a luz da incerteza, da desconfiança, abriu caminho para o conhecimento do que estava realmente ocorrendo.

Vida que não tem valor
Homem que não sabe dar
Deus que se descuide dele
Jeito a gente ajeita
Dele se acabar.
Fica mal com Deus… (7)

História pra ser vivida, pra ser lembrada. Tivemos uma ditadura. Conheçamos as consequências disto para que possamos tomar todas as medidas necessárias para que não se repita.

Até!

Nota – As músicas citadas acima são:
1 – Arueira –Geraldo Vandré
2 – Porta Estandarte – Geraldo Vandré e Fernando Lona
3 – Disparada– Geraldo Vandré e Théo de Barros
4 – Samba em Prelúdio – Baden Powell e Vinícius de Moraes
5 e 6 – Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores – Geraldo Vandré
7 – Fica Mal Com Deus – Geraldo Vandré

Fazendo festa… simples.

Para todos os amigos e leitores deste blog:

são francisco natalPenso que o Natal seja assim, leve e límpido, como a interpretação de Nei Matogrosso para a canção de Vinícius de Moraes e Toquinho.

Para lembrar Vinícius de Moraes

vinicius

Uma semana intensa impediu-me de homenagear Vinícius de Moraes na data de seu centenário, 19 de outubro. Gostei muito do que vi e li sobre o poeta, sobretudo de um, publicado no Portal Pv3. Flávio Monteiro é o autor de texto sobre os afro-sambas, um disco com nove canções de Vinícius de Moraes e Baden Powell. Vale a pena conhecer todo o texto. Veja o começo aqui e clique no link, logo abaixo, para conhecer todo o post do Flávio.

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Centenário de Vinícius de Moraes: Os Afro-Sambas

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Baden Powell e Vinícius de Moraes se uniram

para mudar os rumos da MPB

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É impossível reduzir a obra musical de Vinícius de Moraes a apenas um disco; um dos poucos que pode se orgulhar de ter trabalhado com inúmeros mestres da música brasileira, como Tom Jobim, Chico Buarque, Toquinho e, claro, Baden Powell (entre muitos outros), Vinícius compôs mais de 300 canções. Mas, como homenagem ao centenário de seu nascimento (19/10/1913), escolhi escrever sobre um dos mais importantes discos da música brasileira e que, coincidentemente, me apeguei muito nos últimos dias: Os Afro-Sambas.

CLIQUE AQUI E VEJA TODO O TEXTO COMPLETO SOBRE ESSE DISCO INCRÍVEL

Até mais!

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