Já se tornara rotina, embora não deixando de ser uma situação delicada. O gato vem aí! Chegará segunda, oito da manhã para nova inspeção. A rataria entrou em extremo alerta. Não bastavam as armadilhas cotidianas? Não eram suficientes as ratoeiras armadas pelos donos do pedaço? Tinham que mandar o gato?
Dona Ratazana estava nervosíssima. Acabara de colocar no mundo mais uma ninhada de pequenos roedores lindos, como são lindos todos os filhos das mães; ela não estava disposta a grandes movimentos ou mudanças quaisquer que fossem. Dom Ratão tentava segurar o humor da matriarca: “Calma, Ratazaninha. Você sabe que tudo se arranja!” Acontece que a mãe de parto recente não admitia arranjo nenhum.
Mesmo cansada daquela situação, Dona Ratazana temia virar comida de gato. Ainda mais sendo um gato safado, vagabundo, ladino profissional. Onde já se viu gato marcar data e hora pra inspeção? Todo mundo sabia que era ração de primeira que o felino queria. Ela bem que insistia para que Dom Ratão já fosse ao portão com a ração e levasse o visitante para bem longe da rataria. Ele só balançava a cabeça, discordando e aceitando o jogo do gato. Teriam que aprontar tudo para a visita indesejada.
Sábado todo, domingo, até altas horas todos os moradores trabalharam incansavelmente para esconder tudo, camuflar, deixar o local como se nunca houvesse tido algum rato por ali. Foi um imenso corre-corre entre a mansão e uma edícula abandonada no fundo do terreno. O ambiente contava com outros ratos que, trocando espaço por comida, aceitavam esconder os companheiros.
Última tarefa da noite de domingo, Dom Ratão espalhou ração em pequenas vasilhas nos locais estratégicos já conhecidos, mas que mal escondiam o lar dos ratos. Também deixou água fresca e até mesmo algumas falsas ratoeiras, como se a mansão estivesse sempre limpa e livre de roedores. Próximo das almofadas onde o gato descansaria deixaram lascas de peixe, pedaços de alcatra, tudo muito gostoso e apetitoso.
O gato veio e fez a inspeção. Ficou satisfeito e até manifestou percepção de roedores em uma saída para a residência ao lado, distante da edícula que ficava no fundo. Permaneceu por um bom tempo próximo ao buraco na divisa com os vizinhos, fingindo estar prestes a trucidar os ratos que de resto, tinha certeza, não apareceriam. Ainda na noite de segunda os donos do local, satisfeitos, condecoraram o gato pela ausência de roedores no espaço. Pouco depois o gato foi levado para averiguar outros locais. Os ratos nem fizeram festa com a partida, acostumados ao simulacro de inspeção. Apenas trouxeram seus pertences de volta e seguiram a vida normalmente, comendo tudo o que podiam e espalhando a peste por todo o país.
Esse gato é bem conhecido das instituições brasileiras…
A TV noticiou a crise no sistema carcerário. Pernambuco decretou estado de emergência. Contou o preso ao repórter que quando fazem inspeção é em um único pavilhão de cada vez, ainda avisando o dia da “visita”. Então, levam-se armas, drogas e tudo o mais para os pavilhões que não serão visitados. Tudo fica legal para a visita dos gatos. E é assim também em outros setores; gatos marcando com ratos os dias de visita…
Até mais!
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Nota: Aldemir Martins, criador da obra acima reproduzida, nada tem com os “gatos” deste texto. A imagem, além de ilustração, foi escolhida para lembrar o grande artista.
Excelente texto! E viva a Ratolândia Tupiniquim, cujo início data de mil quatrocentos e … qual ano mesmo?! 😉
O que faço com seus textos, eles me inspiram sempre, toda vez antes de escrever um simples e-mail me vem a mente a suas dicas, obrigada