
Pura magia literária! Estamos no século XVI. O extenso litoral brasileiro é totalmente dominado pela mata atlântica e nele habitam diferentes grupos indígenas; aos milhares. São guerreiros e lutam bravamente contra os invasores europeus. Um branco consegue escapar vivo, sem ser devorado por antropófagos selvagens; é Hans Staden, o autor da narrativa das duas viagens que fez ao Brasil.
Ao longo de muito tempo li resenhas, resumos, vi o filme ( produção de 1999) de Luiz Alberto Pereira e li pequenos trechos de “Duas Viagens ao Brasil” cujo título original, de 1557, é imenso: “Descrição verdadeira de um país de selvagens nus, ferozes e canibais, situado no Novo Mundo América, desconhecido na terra de Hessen antes e depois do nascimento de Cristo, até que, há dois anos, Hans Staden, de Homberg, em Hessen, por sua própria experiência, o conheceu e agora a dá a luz pela segunda vez, diligentemente aumentada e melhorada”.
O livro é um dos primeiros sucessos de venda que se tem notícia, tendo sido publicado em diversos países e em diversos idiomas. A imensidão americana era novidade misteriosa e descrições farsescas e fantasiosas de viagens eram comuns. A viagem de Hans Staden foi real e o autor preocupa-se em dar veracidade ao relato. A grande atração do livro é ter sido o autor preso pelos índios Tupinambás que tinham por hábito, literalmente, assar os inimigos e devorá-los em cerimônias singulares. O grande valor literário está em que este é um dos primeiros relatos consideráveis de como era o Brasil em 1500.
O Guarujá era apenas a ilha de Santo Amaro e nela foi construído um forte. Deste Hans Staden foi artilheiro e saindo do mesmo em expedição de caça foi aprisionado pelos Tupinambás, inimigos dos portugueses, mas amigos dos franceses. Essa amizade com franceses denota o quanto a costa brasileira era frequentada por navios de diferentes procedências, principalmente das potências marítimas do período. Foi só pela ameaça de outros navegadores que Portugueses resolveram tomar posse definitiva das novas terras, criando a primeira vila, São Vicente, vizinha à ilha de Santo Amaro no hoje litoral paulista.
As descrições de Staden tornam a viagem emocionante; sabemos como eram as casas dos Tupinambás, temos noções precisas de como caçavam, como adoravam seus deuses… Situações que pareceriam absurdas ao observador comum ganham outro sentido na narrativa do autor alemão: as mulheres “ao catarem os piolhos uma de outra, vão os comendo. Perguntei-lhes muitas vezes porque assim faziam, e me responderam: – São nossos inimigos que nos comem a cabeça, e por isso nos vingamos deles”.

Nos pequenos detalhes há descobertas intrigantes. Os Tupinambás comem apenas inimigos. O autor nada diz sobre matar e comer mulheres ou crianças. Os índios vingavam-se do inimigo devorando o corpo do mesmo. Resta saber por que não fizeram o mesmo com o alemão. Há discussões intensas por aí. No livro o autor quer fazer crer o leitor em sucessivas interferências divinas livrando-o da morte. Alguns críticos afirmam que nossos índios não se alimentavam de covardes e que as intensas orações de Staden, pedindo auxilio aos céus, podem ter sido interpretadas como fraqueza.
Gostei e recomendo a viagem (Obrigado, Waldenia, pelo presente!). A edição que ganhei é da editora Martin Claret e, além do texto integral, conta com reproduções das ilustrações originais que, por si, constituem-se em outro imenso atrativo.
Sorte nossa que Hans Staden não tenha se tornado refeição para os Tupinambás. Ganhamos não o herói, nem o abençoado por Deus que o texto quer induzir, mas sim, um retrato precioso de nosso país. O Brasil que temos não começou na atual gestão, nem na gestão da oposição. Fomos uma grande terra, povoada por vários grupos humanos. De repente, vieram invasores europeus e tudo mudou; chegamos aos dias atuais. No entanto, quanto mais desvendarmos o passado maiores possibilidades teremos de entender o presente e, quem sabe, possamos até pensar em um futuro melhor.
Até mais!