
Da janela da clausura dessa interminável quarentena vejo Rubão, na porta da doceria. Ele não leva jeito de quem gosta de doces, mas como a doceria vende outras coisas… Meu conhecido deve ter por volta de 40, 50 anos. Pode ser mais, ou menos. Ninguém mantém o frescor da pele morando na rua. E é na Avenida Brigadeiro e em outras calçadas de vias próximas onde ele reside.
Rubão está sempre alegre, trocando pouquíssimas palavras com os transeuntes, mas estabelecendo papos enormes com quem só ele vê. Tem um olhar arguto e uma percepção notável. Provavelmente foi o primeiro indivíduo a registrar que eu havia parado de fumar. Nunca mais pediu-me cigarro. Percebo, quando o encaro, um certo olhar de superioridade. Ele é livre, e eu sou preso a convenções, ao modo de me vestir, transitar, viver… Ele me olha com desdém de quem é livre e, da janela onde o vejo, sinto inveja.
Havia um outro conhecido cuja tristeza incomodava. Tinha um olhar desesperador e, me parece, já perdera a fala no silêncio imposto por todos os que o ignoravam, caminhando como se não o vissem. Diferente de Rubão, que é alegre e que se deita na calçada como quem toma sol em praia paradisíaca, esse outro vivia encolhido nos cantos e, inesquecível, durante chuvas permanecia agachado, como quem toma um banho restaurador, ou sofre um castigo. Era um homem triste e toda a tristeza ficava no olhar, quando entregávamos algo a ele. Também como Rubão recusava roupas limpas. Um dia cismei e teimei em levar calça e camisa para ele. Olhou-me silenciosamente, com expressão de não precisar daquilo e seguiu, lentamente, evitando me olhar por algumas semanas. Um dia desapareceu. Aliás, um dia percebi que não o via há algum tempo.
Observo a postura do Carlos, que guarda carros três vias acima da rua onde moro. – Com licença, senhor, vou trabalhar! É assim que ele se despede, após conversas rápidas enquanto compro frutas de um ambulante que mantém um carrinho na esquina da Artur Prado com a Rua Pio XII. Carlos tem uma subserviência latente, de quem descobriu na aparente mansidão um meio de sobreviver à violência urbana. Atento às vagas de ocasião, orienta motoristas que precisam estacionar. E lá vai ele, com leves mesuras, cabeça baixa, com os braços indicando à esquerda, à direita. E informa que guardará o carro enquanto o dono não estiver presente. Lembro a arrogância dos que nem um mero olhar dirigem à “essa gente”. Já vi em um e outro momento quando entregam uma moeda, com desprezo. Carlos ignora, e volta sorrindo, conversando com o vendedor, comigo. Sem nunca deixar a atenção ao trânsito. – Com licença, senhor, vou trabalhar!
Também na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, bem em frente ao início da Alameda Ribeirão Preto e rente à grade que cerca o supermercado, há uma cabaninha feita de material alternativo, encontrado certamente pela dona, uma moça tensa. Tenho medo de olhar para ela. Aos gritos e xingamentos para o ar, para os veículos que passam, para aqueles passantes que a incomodam, ela me lembra aquelas mulheres fortes, dispostas a tudo para defenderem seu espaço, suas crias. Descobri, com o tempo, que é o tipo e a forma de olhar que a incomoda. Percebi também que a luta é pelo que é dela, aquela cabana onde, durante algum tempo, ela dividiu com um namorado. As brigas eram notáveis. O dono da banca de jornais, bem próxima, já manifestou ódio pela moça. Um dia desapareceu a moça, a barraca. Pensei com meus botões: – conseguiram! E cogitei que pudessem ter arranjado algum pretexto para prendê-la, matá-la. Cheguei a vê-la em outra rua, me alegrando por sabê-la viva. E, mais algum tempo ela voltou e está lá, no mesmo lugar. O passeio é público, logo é dela. E ela mora onde bem quer.
Esses paulistanos certamente incomodam muita gente. É fácil dizer que eles são “sujos”, que são “vagabundos”, que “deveriam trabalhar”, que deixam a cidade “feia”. Lá atrás, em algum momento, essa gente foi para a rua. Sem possibilidade de uma outra vida, vivem como é possível. Alguns com serenidade, outros com tristeza, aqueles com raiva e outros, ainda, com a indisfarçável liberdade de padrões, de formas, maneiras.
Vejo o trabalho do Pe. Lancelotti e de outros grupos que apoiam esses paulistanos. Trazem comida, agasalhos no inverno, prestam socorro aos que ficam doentes, brigam por eles quando necessário. Pessoalmente vejo-os como pessoas corajosas por terem se apossado, insistido, resistido a tudo e todos. São sobreviventes! E ouso mesmo a dizer que há momentos felizes, quando por exemplo vejo Rubão brincando com o garçom do bar que fica na esquina. O rapaz trabalha para evitar que o outro perturbe os clientes. Às vezes grita, outras o pega pelo braço e indica direção oposta, mas também é quem o alimenta, brinca e, solícito, busca isqueiro para acender o cigarro do amigo.
Antes de terminar este volto à janela. Rubão está lá, firme e forte em frente à doceria. Parado de forma a observar a televisão acima dos freezers. Está lá, com a postura de dono da rua, peito aberto, corpo ereto, quase desafiador. Como se dissesse “a rua é minha, daqui não saio, ou saio quando quiser”. Está sem máscara, sorridente, falante, os braços dançando pelo ar em papo com interlocutor invisível. E constato o medo que sinto das ruas, da pandemia, do contágio. E torço, rezo, para que tudo corra bem para esses meus caros vizinhos.
Até mais!
Meu amigo Valdo, esse texto me fez lembrar do Capó, nosso conhecido aqui do bairro, morador da calçada em frente ao Santander da Paes de Barros. Um dia, quando eu saí do banco, ele me surpreendeu com a seguinte frase: “Muito bonita essa sua blusa de arabescos”. Desde então, sempre que vou ao banco (sim… sou das antigas… vou a bancos…rsrs) a gente conversa um pouquinho. Capó conta histórias de quando morava em Brasília, mais de duas décadas atrás. Distância de Brasília quase todos nós temos razões de sobra pra querer. Mas Capó nunca disse o que o trouxe a São Paulo. Ou quem. Está aqui e diz que está bem. Ele sabe meu nome, mas me chama de Arabesca.
Lindo texto, valeu a dica Simone