Entre as múltiplas funções das pedras de um jogo de dominó estão a facilidade em compor escadas, estabelecer limites da coxia em espaços imaginários ou criar rotundas no fundo de um palco. Tampas de tubos de pasta de dente podem se tornar pés de uma mesa; umas sobre as outras formam belas colunas e, com a parte menor para baixo, simulam vasos. Tampas de garrafa são bandejas onduladas e caixas de fósforo se transformam em armários… Foi assim, brincando com cacarecos que iniciei minha paixão por cenários.
Penso ter sido sorte não dispor de um quarto cheio de brinquedos. Isso nos permitiu, incluindo aqui irmãos e primos, a transformar latas de sardinha em vagões de trem de ferro, cascas de nozes em carapaças de tartarugas e latas de extrato, ou de óleo, em pés de lata. Aprendemos rapidamente a transformar câmaras de bicicleta em estilingues após identificarmos as forquilhas mais resistentes nas goiabeiras do quintal e por aí seguimos, somando bolas de gude, piões, carrinhos e toda a sorte de brinquedos aos nossos artefatos caseiros.
As pessoas crescem e param de brincar. Algumas. Outras continuam brincando – que é a melhor definição que assumo para teatro: brincar de ser! No meu caso, o lado estranho de algo legal, iniciado lá na infância, tornou-se um razoável vício em guardar coisas. Um acumulador, dizem atualmente. Uma dificuldade considerável em desapegar-se de coisas que, quase sempre, perdem função e serventia.
Obviamente que há desculpas esfarrapadas para acumular bobagens. Minha preferida é pelo fato de vir de uma época, e de um determinado grupo social, em que guardávamos bexigas pelo maior tempo possível e, quando presenteados, desembrulhávamos o objeto com o máximo cuidado para, em ocasião propícia, dar novo destino ao papel que poderia ser uma capa de caderno, forrar o fundo de uma gaveta e até embrulhar um novo presente. A vida não era fácil!
Há justificativas afetivas: a caneca presenteada pela tia, o copo e a imagem da santa que se tornaram lembranças da avó, o par de esporas usado pelo pai quando no exército, a lanterna que acompanhou o avô ao longo de 40 anos na Mogiana, o potinho que veio da vizinha, a espanhola D. Antônia, o livro usado por minha mãe quando na escola… Deixar essas e outras bugigangas gera uma culpa que nem Freud resolve!
Acontece que, entre o brinquedo e a lembrança, há os badulaques (essa palavra muito usada por D. Laura), os bagulhos (com outra função para a molecada de hoje) e as tralhas, amigas das traças e teias de aranha. Por que alguém guardaria tampas sem panela? Potes de plástico sem tampas, copos e pratos díspares, roupas número 40 para quem já beira ao 48? Vidros de compotas vazios, alguns cheios de rolhas inúteis, outros cheios de parafusos sem porcas… E para dar um fim nessa constrangedora relação há os restos de tintas já secas, inúmeros suportes para mangueiras de chuveiro e pedaços de vela nunca encontrados quando acaba a energia.
Há muito tenho consciência de ter manias de guardar coisas. Lá atrás, quando tive um quintal para chamar de meu “colecionei” fósforos queimados, vidros de energético e embalagens plásticas do concorrente, o tal que vem cheio de lactobacilos vivos. Quando questionado sobre a tal mania bancava o artista plástico: “- Vou fazer uma instalação!”. Da casa grande para um kitchenette, a futura fracassada instalação foi toda para o lixo e, algum tempo depois, já professor, passei a acumular papéis.
Revistas para exemplificar anúncios, mídia cards para diferentes exercícios, embalagens diferentes para atividades em criatividade… Jornais, malas diretas, papeis de embrulho personalizados… Encartes, brindes, materiais de ponto de venda… E de cada objeto tornado exercício o registro físico em papeis, muitos papéis, posto que arquivos digitais não têm a menor graça…
Da primeira terapia guardo os exercícios de desapego que, em bom português, nada mais são do que jogar cacarecos fora, dar destino ao que ainda possa ter e, prêmio garantido: ganhar espaço. Periodicamente pratico o tal exercício, mas percebi nesses dias, ao preparar minha mudança, que aqui e ali driblei legal essa coisa de desapego. Posso exemplificar com panelas de pressão obsoletas, agendas usadas desde o século passado, leques de um frustrado projeto teatral e, entre outras, vários canudos que são suporte para papel toalha e papel higiênico.
Quantas coisas úteis estão inúteis por aí? Quantos cacarecos absolutamente sem utilidade ocupam espaços que, livres, no mínimo deixariam ambientes mais bem arejados? Difícil! Minha solidariedade àqueles que, como eu, têm essa mania estranha. E assim, só me resta continuar mesmo sabendo que virão recaídas!
Bora desapegar!
Parabéns sempre ….. sou amigo do nosso querido João Justino….. que nos deixou muitas saudades ….. Sebastiao Honorato….. Brasília-Df