Por um bom período moramos lado a lado. A proximidade de relações entre nossas famílias facilitou a ausência de muros e são lembranças muito fortes quando, pela manhã, vinham mães com crianças doentias, algumas bem choronas. Sem muita conversa, D. Palmira caminhava pelo quintal colhendo pequenas porções de ervas; arruda era a mais comum. Sem tirar a criança do colo da mãe, D. Palmira fazia o sinal da cruz em si e na doentinha. Iniciava o benzimento falando bem baixinho; a mais frequente ação era para tirar o quebranto.
“Tu tens quebranto, dois te puseram, três hão de tirar… em nome das três pessoas da Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.
Outros tempos quando para qualquer mal o primeiro socorro era o benzimento. De crianças perebentas tirava-se o “cobreiro brabo” e cabia ao paciente responder três vezes à pergunta da benzedeira: “O que é que eu tiro?” E ouvia-se a voz débil, “cobreiro brabo!”. D. Palmira para uns, Madrinha Bia para outros, era mulher risonha, adorava um bom prato e estava sempre disposta ao trabalho, ajudando a filha a cuidar de nove crianças, seus netos. Creio que a maioria das crianças do bairro e outro tanto de adultos receberam as bençãos daquela mulher, viúva simples e pobre, que jamais cobrou um tostão pelo trabalho.
Minhas recordações de Tia Palmira são distintas. Irmã caçula de minha avó, tinha um rosto alvo, sempre muito bonita e sorridente. Recordo a tia lutando pela saúde do marido, Tio Alcides. Ela não mediu esforços buscando a cura para a doença que, penso eu, devia ser desses males difíceis. Foi a primeira vez que ouvi falar em Zé Arigó, o famoso médium que recebia o espírito do Dr. Fritz. A Tia Palmira levou o marido até Congonhas do Campo, em Minas Gerais, para que este fosse operado espiritualmente. O médium foi honesto e afirmou que a ação seria paliativa, pois não haveria cura. Todavia, maior poder tem Deus e Tia Palmira continuou. Em Uberaba procurou Chico Xavier e lá também frequentava o Sr. Eduardo, ou Eduardinho, que trabalhava com ervas, beberagens, garrafadas.
À morte inevitável do marido ocorreu longo período de luto. Dez anos vestindo-se com roupas pretas. Cabe ressaltar que esse fato ocorreu bem antes do vestido “pretinho básico” das elegantes de ocasião. Tia Palmira não se preocupava com moda, mas com o respeito que achava que devia ao falecido. Passado o luto, voltou a sorrir, a usar joias e a se maquiar. Sendo bonita, logo reencontrou antigo afeto com quem se casou e foi feliz. A última vez que nos encontramos foi no velório de minha avó e Tia Palmira, com boa dose de humor macabro, afirmava entre risos contidos ser a próxima. “Estou tão ruim! Logo, logo vou eu!”.
Não tendo hábito de assistir programas de culinária vi poucas vezes a simpática Palmirinha, mas quando a vi estava sempre cozinhando com bom humor e afeto. Tive tempo de perceber a relação da cozinheira para com seu trabalho. Um aprendizado necessário: cozinhar com alegria e afeto, uma tarefa primordial para a relação que se estabelece entre as pessoas. Cozinhar para si e para o outro! Algo a ser estimulado posto que hoje em dia é comum encontrar pessoas que rejeitam o fazer uma refeição como se essa não fosse fundamental para qualquer ser humano.
A história de Palmirinha, descobri nos obituários, é bastante densa, com uma infância e juventude sofridas. Embora todo o passado conturbado e difícil, tornou-se a mulher doce, a apresentadora simpática e a cozinheira amorosa. Deixou-nos a lição fundamental do bom humor e da alegria no ato de transformar ingredientes em refeições deliciosas. Ensinou-nos, como alguns de seus pares ensinam, que cozinhar é uma arte, um terreno de criação e transformação.
D. Palmira, Tia Palmira, D. Palmirinha! Três mulheres tão distintas e, percebo agora, tão próximas no sorriso, nas relações com a vida, com o trabalho, com o outro. São mulheres que deixaram lembranças doces. Para elas destinamos vibrações carinhosas, desejando-lhes em dobro o que por nós aqui fizeram.