Sempre passei pela Via Dutra em viagens ao Rio de Janeiro, Aparecida ou como atalho para o litoral norte paulista. Carro ou ônibus, a visão que se tem do Vale do Paraíba é encantadora. Seja pela imensidão da Serra Mantiqueira mostrando-se com infinitas possibilidades conforme recebe os raios solares, ou então em longos trechos em que se tem a companhia do rio e da estrada de ferro. A paisagem atrai, estimula a curiosidade, reaviva lembranças.
Múltiplas cidades alternam impressões do viajante que passa pela Via Dutra. As indústrias de São José dos Campos, recordações de Monteiro Lobato em Taubaté, os mistérios da fé em Aparecida e, já no estado do Rio de Janeiro, a seriedade militar de Resende, a altivez do Itatiaia, a descida de outra serra para ganhar o litoral fluminense… Há mais; muito mais!
Uma tenda com palco italiano e capacidade para 400 pessoas sentadas (as laterais ampliaram o número de espectadores) percorreu cidades do Pará e Maranhão.
A quarta edição do Projeto Arte na Comunidade será no Vale do Paraíba! A primeira ocorreu nos estados do Pará e Maranhão, percorrendo dezenas de cidades da Amazônia. Desde então, enfatizando os objetivos primordiais tais como o resgate e a valorização da cultura local, atentando para questões de preservação ambiental e de educação para a cidadania o Arte na Comunidade foi em frente. A segunda edição foi em Minas Gerais, no Pontal do Triângulo Mineiro.
Quatro cidades mineiras receberam os agentes do projeto em apresentações públicas e, em seguida, foram realizadas apresentações teatrais em escolas municipais estimulando o levantamento de aspectos locais através da criação de textos e contação de histórias. Uma mostra teatral encerrou a aplicação do projeto na região e, entre as atrações, uma exposição dos resultados dos trabalhos realizados pelos alunos de cada cidade.
Mostra teatral e atividades nas escolas dos municípios ocorreram em Minas Gerais.
A terceira edição, em 2015, ocorreu na Baixada Santista acrescida de um maior contato com os educadores das cinco cidades participantes, resultando em expressiva adesão e participação dos mesmos nas diferentes etapas do Arte na Comunidade. Agora em 2016 prosseguimos em cidades paulistas: Cruzeiro, Lavrinhas e Queluz são os novos destinos do nosso projeto.
Exposição do resultado das atividades em escolas da Baixada Santista foi um fato marcante do Arte na Comunidade 3.
E assim, lá vamos nós para o Vale do Paraíba! Sonia Kavantan, a idealizadora do Arte na Comunidade, Lilian Takara, Milka Master, Filipe Brambilla e Flávio Monteiro. Nossa equipe começa enxuta, aumentando posteriormente com profissionais da região visitada. Somaremos produtores, técnicos, atores entre outros companheiros que comporão a equipe final com os educadores e representantes de cada município para a concretização do trabalho.
Mais uma vez tenho a honra de escrever os textos – já comecei! – e também farei a direção dos espetáculos. Além do que publicarei aqui, neste blog, convido todos a seguirem as ações do Arte na Comunidade através das redes sociais e do blog que registra as atividades do projeto. Grandes descobertas, expressivas experiências, o Arte na Comunidade beneficia as comunidades visitadas e todos que dele participam.
Terceiro dos cinco textos do projeto Arte na Comunidade 2 que estou publicando neste blog, “O Inventor de Histórias” faz referências e singela homenagem a Monte Alegre de Minas. O intérprete da história foi MARCELO RIBAS e as imagens são de THANERESSA LIMA e do meu arquivo pessoal.
Havendo interesse em reproduzir o texto ou interpretá-lo, peço a gentileza da citação da origem.
Organizado pela Kavantan & Associados, o projeto Arte na Comunidade 2 foi patrocinado pela Alupar e Cemig, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura e contou com o apoio das prefeituras de Ituiutaba, Canápolis, Monte Alegre de Minas e Prata.
O Inventor de Histórias
Original de Valdo Resende
MÚSICA SUAVE. O CONTADOR ENTRA EMPURRANDO SUA MALA-BIBLIOTECA MANUSEANDO UMA MATRACA ENQUANTO PREPARA O AMBIENTE PARA CONTAR SUAS HISTÓRIAS. ABRE A MALA PARA SI, PROCURANDO OCULTAR O INTERIOR DA MESMA. TOCA A MATRACA E PARA, ABRUPTAMENTE, TIRANDO DA CAIXA UM “COLAR” COM DIFERENTES NARIZES.
Marcelo Ribas e sua coleção de narizes em foto de Thaneressa Lima (divulgação)
– Ah, olá! Todos estão bem? Olhem o que achei hoje nos meus guardados. Parte da minha pequena coleção de narizes. Eu coleciono Narizes! Esse aqui, por exemplo, é de Cyrano de Bergerac, um cara muito feio, mas muito feio mesmo! Escondia-se da moça que amava, com vergonha do nariz, mas conquistou a moça com poesia. Poesia! (pega outro nariz, de palhaço) Este seria um simples nariz de palhaço, não tivesse pertencido ao Arrelia, o melhor palhaço de todos os tempos. E este (pegando um terceiro, enorme) é o de Pinóquio. O boneco que virou menino, de quem todos sabem a história. Esse nariz bem que poderia ter sido de Alfredo, um garoto meu amigo, que conheci quando estive não faz muito tempo, em Monte Alegre de Minas.
(VOLTA A MÚSICA)
Senhoras e senhores, meninas e meninos de Monte Alegre! (PARA DE TOCAR A MATRACA E FAZ MESURAS, ENQUANTO PROSSEGUE A AUTOAPRESENTAÇÃO) Meu nome é Murilo Rosa Dourado! Obrigado pela simpática acolhida! Estou feliz com a atenção e o carinho de todos. Com grande prazer quero apresentar a vocês a verdadeira fortuna de um ser humano: uma biblioteca! (PEGA UM LIVRO DE AVENTURAS) Com Júlio Verne percorri as Vinte Mil Léguas Submarinas e após descansar com Monteiro Lobato (MOSTRA O SEGUNDO LIVRO) no Sítio do Pica-pau Amarelo voltei para minhas queridas viagens, dando a volta ao mundo em oitenta dias. Conheço todos os grandes heróis (SEMPRE MOSTRANDO LIVROS): Ulysses, Robin Wood, Batman e Macunaíma! E é, claro, nosso pequeno Alfredo. Aquele que poderia ter recebido o nariz de Pinóquio, mas não por mentir, por inventar histórias!
Detalhe da Praça Nicanor Parreira. Arquivo pessoal.
Imaginem o menino Alfredo, no coreto da Praça Nicanor Parreira, encarando toda a cidade. Veio de casa já vestido de índio e foi contando esse fato: (IMITANDO O MENINO, CONTA RAPIDAMENTE) “- Sou um Índio Tupi, irmão de Mani, a menina que tinha a pele mais branca de toda a tribo. Mani era uma menina feliz, mas ficou doente. O pajé não curou, nenhum ritual curou e, para tristeza de todos, Mani veio a falecer. Meus pais resolveram enterrar minha irmãzinha dentro da oca; passado alguns dias, a cova sendo regada a lágrimas, nasceu uma planta. A raiz da planta era marrom por fora e branquinha, muito branquinha por dentro, como Mani. Os índios da nossa tribo passaram a usar a raiz para fazer farinha. A raiz branquinha é a nossa mandioca, uma junção de Mani – minha irmãzinha – com oca, a nossa casa.”
O pessoal ficou olhando Alfredo e, lógico, duvidaram do menino, dizendo-se irmão de Mani “- Isso é mentira! Que mentiroso” é o que murmuravam. E o menino, com toda convicção do mundo respondeu: “- Eu afirmo que é verdade!”. O mestre de cerimônias, que estava conduzindo a apresentação, percebendo que Alfredo estava contando uma lenda como se fosse história dele, resolveu ver até onde o menino chegaria, perguntando: “- Pois então, senhor Índio Tupi, irmão de Mani; e agora, hoje, onde o senhor mora?” Alfredo, não titubeou! “- Eu moro no poço sem fundo!”
A biblioteca ambulante. Marcelo Ribas em foto de Thaneressa Lima. (divulgação)
A praça caiu na gargalhada com a mentira do menino, que assegurou a todos: “- Eu afirmo que é verdade!”. Como que alguém pode morar em um poço onde nunca foi encontrado o fundo? Que mentira! E Alfredo, ali, sempre com convicção: “- Eu afirmo que é verdade!”. O mestre de cerimônias exigiu: – Você pode nos explicar como é isso, Sr. Alfredo?” E o menino: “- Alfredo, não, homem branco. Sou Quati, irmão de Mani.” Quati é um bichinho, parente do guaxinim, que tem um narigão! Quati! Como alguém pode se chamar Quati? “- Quati afirma que é verdade!”. Pois o Alfredo, digo, Quati, continuou sua história:
Detalhe do museu em homenagem aos soldados que lutaram na Guerra do Paraguai. Foto arquivo pessoal.
“Há muito tempo vieram parar nessas terras muitos soldados. Vinham da guerra e estavam muito doentes. Era a bexiga. Mais tenebrosa que arma de guerra, a doença matou dezenas de soldados”. E o mestre, alimentando a história: “- Então, Quati viu os soldados da Retirada da Laguna, durante a guerra do Paraguai quando passaram por aqui?”. Alguém do público não se aguentou, falando baixinho, “- Que mentira” e antes de responder ao mestre, Quati, olhando para o dito cujo: “- Quati afirma que é verdade! Vi todos eles. Um por um e não peguei a doença porque sou protegido de Tupã. Mas muita gente da tribo foi infestada por doença de branco. Não podíamos ficar por aqui. Passou o tempo, acabou a guerra, e o homem branco foi tomando posse da terra, transformando mata em lavoura. A caça ficou escassa. O povo de Quati teve que buscar proteção, moradia em outro lugar”. A plateia era puro riso e burburinho. Que mentira! Aquilo era uma festa do folclore e não um festival de mentira. E Alfredo, mantendo a fé: “- Quati afirma que é verdade!”.
O cemitério onde enterraram soldados vitimados pela varíola. Parte do monumento em memória à Retirada da Laguna. Foto arquivo pessoal.
“- Meu caro Quati, disse o apresentador da festa, como a tribo se protege da invasão do homem branco? Não seria melhor conviver? Onde seus irmãos foram morar?” E o menino: “- Estamos na floresta, que o homem branco pensa ser amaldiçoada! Somos nós que iluminamos a mata, para fazer que o homem branco pense em fantasmas, almas penadas. Assim ficam longe da floresta que nos resta e assim nos deixam em paz”. Um menino gaiato, amigo de Alfredo, não se conteve: “- Escuta aqui, Quati, vocês usam lanterna ou luz elétrica na floresta?” E Quati, sério: “- Usamos tochas, pequeno bacuri. Apenas tochas!”.
Aos poucos, a plateia foi rendendo-se à história de Quati, quer dizer, de Alfredo, ou é de Quati? Bom, a história de Quati contada por Alfredo, reunindo algumas das mais gostosas histórias de Monte Alegre em uma única história. Do poço sem fundo, das luzes na floresta assombrada… e até histórias reais, como a passagem dos soldados na Guerra do Paraguai. Uma boa história, a gente sabe, tem que ter lógica. Não pode ser assim, sem pé nem cabeça. Tem que ter começo, meio, fim. E foi buscando toda a lógica da história de Quati, que uma pergunta se fez necessária: “Quati, onde fica o poço sem fundo? Ninguém mais diz onde ele está!” O menino, em tom de confidência, contou: “- Fica no meio, bem no meio da floresta amaldiçoada”. E em tom ameaçador: “E não adianta procurar que ninguém achará esse poço. Só pode ver quem é da família de Quati. E para evitar que alguém descubra, nunca entramos pelo poço, mas por outras entradas que há na região.”
Marcelo Ribas em foto de Thaneressa Lima (divulgação)
Como? Então há outras entradas para o poço sem fundo? “- Quati afirma que é verdade!”. Segundo narrou Quati, essas entradas ficam em uma das cachoeiras do município. Pode ser a Cachoeira do Rio Piedade, a Esperança, ou a cachoeira da Usina Velha no Rio Babilônia. Por trás da queda d’água fica a entrada que conduz ao acampamento da família de Quati.
Acontece que revelando o segredo, Quati colocava a família em apuros. É claro que todo mundo iria tentar encontrar os índios que iluminam a floresta nas noites escuras, sem lua. Muita gente iria atrás desse poço, desses índios, saber como é que vivem lá, distantes de todos. Houve até quem propôs irem todos imediatamente. “- Nunca!” Gritou Quati, ameaçador! “-Nosso segredo está garantido e ninguém, nunca, encontrará o poço, nem chegará perto das luzes da floresta! Nem mesmo as almas penadas que vagam por essa cidade. Ninguém! Adeus! Vocês nunca mais encontrarão Quati!” E Quati, jogando uma bomba de fumaça, desapareceu do palco na frente de todos.
Quati saiu do coreto e nunca mais voltou. Quem voltou, rapidamente, já sem as roupas de indiozinho foi o Alfredo. Imenso aplauso ecoou por toda a praça Nicanor Parreira. Sem dúvida aquela era a melhor história contada na praça. Alfredo era justo merecedor do grande prêmio para contadores de histórias. Alguém, entre brincalhão e invejoso, não se aguentou: “Como esse Alfredo conta mentira! Merecia um nariz de Pinóquio!” E é claro, que Alfredo respondeu: “- Eu afirmo que é verdade!”.
Marcelo Ribas em foto de Thaneressa Lima (divulgação)
(O CONTADOR TOCA A MATRACA E ENCERRA SUA APRESENTAÇÃO COM UM AGRADECIMENTO. VOLTA A MEXER NOS LIVROS, ANTES DE CONTINUAR SEU TRABALHO).
Com o término do Arte na Comunidade 2 passo a publicar neste blog os cinco textos que fizeram parte do projeto. Será um por semana, às sextas-feiras. O objetivo é registrar e tornar as histórias acessíveis aos interessados, principalmente aos habitantes das cidades envolvidas.
A primeira cidade, aqui o critério é alfabético, é Canápolis. “O Enigma” foi o monólogo interpretado por JOSÉ LUIZ FILHO. As imagens são de THANERESSA LIMA e do meu arquivo pessoal.
Havendo interesse em reproduzir o texto ou interpretá-lo, peço a gentileza da citação da origem.
Organizado pela Kavantan & Associados, o projeto Arte na Comunidade 2 foi patrocinado pela Alupar e Cemig, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura e contou com o apoio das prefeituras de Ituiutaba, Canápolis, Monte Alegre de Minas e Prata.
O Enigma
(Original de VALDO RESENDE)
José Luiz Filho em foto de Thaneressa Lima (divulgação)
(MÚSICA. O CONTADOR ENTRA EMPURRANDO SUA MALA-BIBLIOTECA. ANÚNCIA SUA CHEGADA COM O SOM DE UM APITO. PREPARA O AMBIENTE PARA CONTAR SUAS HISTÓRIAS. ABRE A MALA PARA SI, PROCURANDO OCULTAR O INTERIOR DA MESMA. TOCA E PARA, ABRUPTAMENTE, TIRANDO UM COPO COM GARAPA)
– Um brinde! Um brinde com a mais deliciosa garapa da estrela do pontal! (CONTINUA, COM VERSOS DO HINO DE CANÁPOLIS) “Tu és nobre, tu és grande / Município bem amado / És destaque do triângulo /Por ter sempre brilhado”. E quem não gostar de garapa faça o brinde com um refrescante suco de abacaxi! Canápolis merece todos os brindes! “Estrela nova do pontal / És exemplo de grandeza /És cidade de solo forte /Que produz fartura e riqueza.”
Senhoras e senhores, meninas e meninos de Canápolis! (FAZ MESURAS, ENQUANTO PROSSEGUE A AUTOAPRESENTAÇÃO) Meu nome é Lúcio Sabino Palmério Prado! Muito Obrigado pela atenção! Estou honrado e emocionado com a presença de todos. Com alegria apresento a verdadeira fonte de grandes prazeres: Minha biblioteca!
(PEGA UM LIVRO DE MONTEIRO LOBATO)
José Luiz Filho em foto de Thaneressa Lima (Divulgação)
Não tenho o talento da Tia Anastácia, mas posso manipular todas as receitas que celebrizaram a grande quituteira. Doces, salgados, cozidos, assados, fritos… Carnes, massas, peixes! É para enlouquecer qualquer paladar! (Pega Outro Livro) Conheço a vida dos grandes caçadores, dos maiores exploradores. Vi todas as cruzadas e caminhei com cada bandeirante! Sei nominar navios, identificar aviões, automóveis! (PEGA DOIS OUTROS LIVROS) Aqui aprendi tudo sobre o Brasil e neste descobri os mistérios desta deliciosa e cheirosa fruta, o abacaxi.
(Folheia O Livro, Antes De Prosseguir)
Para doceiras e confeiteiros o abacaxi é matéria prima para sucos, sobremesas, batidas. Simples assim. Já para os cientistas é uma planta monocotiledônea, da classe liliopsida, da ordem poales, da família das bromeliáceas… Ufa! Para milhares de pessoas o abacaxi lembra esta simpática e formosa Canápolis.
(FAZ SOTAQUE NORDESTINO E IMITA UMA CRIANÇA)
“- Como é isto, meu caro? Uma cidade chamada Canápolis não devia ter um monumento à cana e não ao abacaxi?”. Hein? Quem foi? Como? Ah! Então, quem fez esta pergunta foi Dorival, um menino que veio da Bahia para morar em Canápolis. Nossa querida Canápolis é, quando comparada a Salvador, Capital da Bahia, um bebezinho. Mas já tem história e sua gente cultiva abacaxis, também cria gado de corte e muito o mais! A cidade vai se transformando, vai se ajustando às novas realidades que o progresso trás. Justamente por ser uma cidade nova e profundamente amistosa e acolhedora é que Canápolis recebeu, há pouco tempo, várias crianças de outras partes do Brasil, cujos pais vieram trabalhar no município. Como esse Dorival.
(FAZ UMA PEQUENA PAUSA. COMEÇA “O ENIGMA”)
Dorival e vários meninos não nascidos em Canápolis estavam participando das costumeiras atividades promovidas pela Casa de Cultura da cidade. Os agentes culturais queriam que os meninos ficassem bem, felizes e participando da vida e da história da cidade. Todo mundo sabe que mineiro é hospitaleiro e Canápolis não nega essa característica: recebe, acolhe e torna seu aquele que vem de fora.
Casa de Cultura, Canápolis, MG – Foto: Valdo Resende
Os agentes da casa de cultura resolveram brincar e propor um enigma para os jovens participantes. Um enigma é um mistério escondido em versos, imagens, mapas, objetos. Um enigma é um adivinha! Prestem atenção:
“Uma só casa
Nela, três senhores
Uma grande luz!
Sem refletores.
O pequeno começo
De grandes louvores!”
Foi um grande alvoroço. Meninos de Canápolis, meninos da Bahia, meninas do Ceará, de Pernambuco, Santa Catarina, Alagoas… Todos tentando adivinhar o enigma. Terezinha, neta de Dona Benedita, respeitada benzedeira, palpitou apressada: (IMITANDO UMA MENINA) “– Monitora, os três senhores são o Pai, o Filho e o Espírito Santo!”. A monitora, que prefere ser chamada de agente cultural, refletiu e respondeu. “- Pai, filho e o espírito santo são um só, que os católicos denominam santíssima trindade. Além disso, Terezinha, essa trindade não explica todo o enigma.”
Era uma sexta-feira e foi sugerido que todos viessem para a Casa de Cultura, pela manhã. Formariam grupos, caminhariam pela cidade junto com os agentes e tentariam decifrar o tal enigma. Prometeram presentes para o vencedor e após uma noite de rápidas pesquisas, todos compareceram para o passeio revelador. Tinham livros e lanches nas mochilas, que ninguém sobrevive sem comida! Decidiram começar por uma rápida pesquisa na biblioteca municipal Carlos Drummond de Andrade. Foi lá que se deu o seguinte fato:
Juscelino, um canapolense que adora competir, lascou para todos: “- Carlos Drummond de Andrade, maior poeta do Brasil”. Dorival, nosso querido baianinho retrucou: “- Maior poeta é Antônio Frederico de Castro Alves”. Octavio, que nasceu no Pernambuco, não ficou por baixo. “- Maior que Manuel Bandeira? Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho?” Genésio, um menino que nasceu paulista entrou de gaiato na história. “- Pois os melhores poetas são paulistas!” Dorival exigiu: “- Pois diga pelo menos um!” Genésio enrolou, enrolou e foi ficando vermelho feito um peru. Uma simpática agente acudiu o menino. “- Guilherme de Almeida, Mário de Andrade e outros; muitos outros! Mas vamos em frente, que o enigma, que é bom, até aqui ninguém respondeu.”
Prefeitura Municipal de Canápolis, MG. Foto: Valdo Resende
Os meninos desceram pela praça, passando pela construção do Teatro Municipal e ali pararam, pois Terezinha, a menina interessada em acertar o enigma sugeriu que a resposta fosse o teatro. Os meninos riram quando Juscelino lembrou que o teatro, em construção, não tem refletor, não tem luz nenhuma. Continuaram caminho, chegando ao prédio moderno que abriga a prefeitura e a câmara municipal da cidade. Genésio, o paulista que não lembrou os nomes dos poetas, resolveu limpar a barra e gritou: “- Professora, Dona Maria Ignez, os três senhores são o prefeito, o presidente da câmara e o povo.” Dorival, não perdoou, “- O povo só tem a praça e olhe lá!” Juscelino completou: “- São duas casas, a prefeitura e a câmara”. Octavio deu o golpe final: “- Genésio, em boca calada não entra mosquito! E vamos em frente que não é aqui que acharemos a resposta”. Dona Maria Ignez convidou todo mundo de volta para a casa de cultura, pois lá, certamente, encontrariam a resposta.
Matriz de São Sebastião e Nossa Senhora de Fátima, Canápolis, MG. Foto: Valdo Resende
Os meninos, antes de entrarem na Casa de Cultura, pararam na igreja Matriz de São Sebastião e Nossa Senhora de Fátima. Como é linda essa igreja! Orgulho da cidade! Suas linhas curvas, uma construção arrojada, moderna! No auditório da Casa de Cultura estava ensaiando a Banda Municipal José Alexandre da Silva, sob a regência do Maestro Leonardo Augusto Reis. Um primor de banda, grande patrimônio imaterial da cidade. A criançada ficou bisbilhotando os instrumentos, fazendo perguntas e o pessoal, simpático, serviu um refresco geladinho para os meninos. Terezinha, a menina que queria adivinhar, resolveu lembrar o enigma:
“Uma só casa
Nela, três senhores
Uma grande luz!
Sem refletores.
O pequeno começo
De grandes louvores!”
A classe já estava quase desanimando. Juscelino brincava: “- Minha gente, lá em casa tem três senhores meu avô, meu pai e minha mãe. Só minha mãe é quem manda!” Depois resolveram tomar lanche no coreto da Praça 14 de Julho. Os agentes culturais, enquanto os meninos comiam, fizeram uma revisão do passeio daquela manhã e do que poderia responder ao enigma. A resposta não está nos livros, mas na reflexão que se faz após as leituras. Eles continuavam as explicações quando um garotinho, também baiano, mas que ainda não tinha entrado nesta história resolveu interromper a conversa. (COM SOTAQUE BEM CARREGADO) “– Olhem aqui, prestem atenção! Estava aqui matutando, matutando…!”.
Ninguém segurou o riso. Baiano, é bom que se saiba, assunta. Assunta! Então quando o moreno porreta matutô… Pois bem, o menino, parou o riso de todo mundo com um “oxi”! E emendou: “- Rumbora seus tabaréu! Olha aqui, prestem atenção, meu nome é Gaspar! E painho e mãinha são vizinhos do Vovô Totóca!” Quando o menino lembrou o Sr. Antonio Ferreira dos Santos, os agentes já sabiam que o menino estava certo. E Gaspar desfechou a história:
“- Uma só casa e nela três senhores: A igreja dos três reis magos. Uma grande luz! A estrela do oriente. Sem refletores. Porque o menino nasceu na pobreza. O pequeno começo De grandes louvores! Porque marca o nascimento de Cristo e a salvação dos homens.”
Toda a turma emudeceu e Gaspar não titubeou: “Rumbora me aplaudi que mereço!”. Como não obedecer? Foi então que os agentes lembraram a Igreja dos Reis Magos construída pelo Vovô Totóca, o Sr. Antonio Ferreira dos Santos, e os outros prédios que contam a vida de Canápolis. E assim termina essa história, que lembra a união e a amizade entre todas as crianças de Canápolis.
José Luiz Filho em foto de Thaneressa Lima (Divulgação)
(O CONTADOR ENCERRA SUA APRESENTAÇÃO COM UM AGRADECIMENTO. FECHA A SUA MALA BIBLIOTECA E SAI DE CENA).
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Nota: O Hino do Município de Canápolis, citado no texto, tem letra de Elias Mateus e melodia de Luciana Bezerra Carrilo.
Um pedido de suspensão do filme “TED” e uma nova investida contra a obra de Monteiro Lobato são situações que me ocupam neste momento.
Um deputado encontrou um meio de projeção fora do horário eleitoral ganhando o noticiário ao pedir a proibição do filme “TED”, de Seth MacFarlane, estrelado por Mark Wahlberg que interpreta um jovem que tem amizade com um urso de pelúcia da infância à idade adulta.
Mark Wahlberg é o astro de TED.
Segundo o deputado, que foi ao cinema junto com o filho, um garoto com 11 anos, o tal filme passa “a mensagem de que quem consome drogas, não trabalha e não estuda é feliz”… Um pai zeloso. Interessante é o deputado preocupar-se com a “mensagem”, o que em si já dá uma ótima discussão sobre as funções desse tipo de produto – ou o deputado desconhece que o objetivo da indústria cinematográfica é arrecadar grana?
O cinema de consumo não é propriamente indicado para educar os filhos. No máximo serve para que pais discutam com as crianças questões tais como as apresentadas em “TED”. É simples assim: ao invés de proibir, discutir com o filho a validade da situação. Ou será que o deputado não consegue encontrar argumentos para convencer o filho da impropriedade das situações apresentadas no filme?
Evitar o cinema e ir para uma biblioteca poderia ser um ótimo conselho ao pai deputado (ou seria deputado pai?). Todavia lá, já sabemos, ele encontrará Monteiro Lobato. E conforme alguns cidadãos, mestres em educação, o célebre escritor é um perigo para a sociedade, com obras “racistas” e “sexistas”.
O “perigoso” Monteiro Lobato.
Os autores da denúncia contra “Negrinha” estão preocupados com a legalização da aquisição da obra pelo MEC – Ministério da Cultura, e com o texto de apresentação da obra. Este seria “ruim e demonstra a falta de cuidado que o MEC está tendo com o assunto.” Um extenso documento discute e aponta as razões dos autores que analisam e interpretam a obra de Lobato buscando confirmar as hipóteses que justificariam as denúncias.
Mais uma vez devo repetir o argumento: discutir a obra é melhor que proibi-la. Resta saber se os professores brasileiros têm condições de discutir a obra de Lobato, ou de qualquer outro escritor para, assim nortear as reflexões de seus alunos. A atitude dos tais mestres em educação é paternalista, pois pretendem entregar a “receita” pronta, quando o problema começa atrás, nas escolas que não preparam professores com competência para discutir literatura com a profundidade necessária.
Bom saber que há pais preocupados com a qualidade dos filmes, assim como há “mestres” preocupados com o conteúdo literário disponibilizado para as escolas pelo MEC. Também é bom lembrar que ninguém deu procuração para esses vigilantes da moral, bons costumes e do politicamente correto. Não vejo diferenças entre esses sujeitos e a horrenda personagem magnificamente interpretada por Laura Cardoso em Gabriela. Tenho a impressão que os vigilantes da vida real têm motivos sórdidos, como a megera criada por Jorge Amado e, como ela, também têm algo a esconder: no caso dos vigilantes da vida real, os verdadeiros motivos dessas ações.
Quero ver tudo. Quero ler tudo. É a melhor forma de desenvolver o discernimento necessário para optar e escolher meu próprio caminho. Incluo entre o tudo que quero ver e ler as tentativas dessas pessoas autoritárias, querendo que o mundo dance no ritmo delas. É assim que seguiremos, discutindo, debatendo, mantendo esse delicioso hábito democrático: o da manifestação e discussão de idéias. Será que esses indivíduos, pretendendo proibições, não concebem a idéia de que discutir um tema gera crescimento?
Quero reverenciar Anita Malfatti pela Semana de Arte Moderna de 1922. Estamos comemorando os 90 anos desse evento que, definitivamente, mudou os rumos da arte brasileira. E é provável que sem Anita Malfatti, a Semana não teria acontecido.
No ano de 1922 seria a comemoração dos cem anos da independência política do Brasil. Parece não ter sido por acaso a escolha daquele momento para iniciar um grande movimento, destinado a inserir no país elementos da arte contemporânea. Pretendendo fugir à influência da Missão Francesa – que aparece aqui e ali ainda hoje – um grupo de artistas realizou, entre 13 e 17 de fevereiro, a Semana de Arte Moderna, que aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo. Portanto, ESTAMOS EM PLENO ANIVERSÁRIO DA SEMANA DE 1922!
Segundo Duílio Battistoni Filho, “a Semana foi um festival dadaísta, no estilo dos organizados em Paris “(Então, eles não queriam fugir da influência francesa?). Com influência francesa ou não, com alguns artistas que estudaram na Europa e outros não, a idéia geral era dar uma identidade para a arte brasileira. Surtos nacionalistas sempre ocorrem por aqui.
Há muitos livros e textos sobre a Semana de 1922. Todos falam de Di Cavalcanti, Zina Aita, Victor Brecheret, Yan de Almeida Prado e entre outros, claro, Anita Malfatti. Além desses, escreve-se muito sobre os antecedentes, principalmente sobre uma exposição de Anita, duramente criticada por Monteiro Lobato e defendida com veemência similar por Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Di Cavalcanti. E é aqui que este texto deixa de ser lembrete histórico para homenagear Anita Malfatti.
Se até hoje encontramos mulheres submissas, em 1917 deve ter sido bem pior. Mas, Anita Malfatti parece ter sido diferente. Costumam dizer que era uma mulher feia e que tinha um defeito no braço. Todavia, essas questões não a impediram de aceitar realizar uma exposição, em 1917, com trabalhos inovadores, ousados, distantes do comum e do tradicional. Também costumam descrevê-la como tímida. Pode ser, mas que era determinada, isso era.
“Paranóia ou Mistificação” foi o que Monteiro Lobato sugeriu já no título de sua crítica a exposição de Anita Malfatti. Relatam que a pintora ficou profundamente abatida. É bom frisar que a atitude de Monteiro Lobato foi a de um crítico discordando com o que via. Ele nem foi original na sua agressividade, por assim dizer; anos antes, em 1913, também o compositor Igor Stravinsky foi execrado em Paris. Ele na música, Anita na pintura, continuaram com a firme determinação de expressarem-se artisticamente.
Na Semana de 1992 Anita estava lá. No saguão do Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, Anita Malfatti apresentou doze telas a óleo, além de outros trabalhos, entre gravuras e desenhos. Muitos desses já haviam sido expostos em 1917. Mais que uma repetição, essa atitude revela uma crença no próprio trabalho; o firme propósito em impor-se e nortear o público para um novo panorama artístico, que, por aqui, foi chamado Modernismo. Consta que as críticas continuaram e também na Semana a artista não foi poupada. Naqueles dias, a pintora já se sabia visada; eram papagaios repetindo Lobato.
Encerrada a Semana, muita coisa mudou. Anita Malfatti passou a dividir com Tarsila do Amaral as atenções de críticos e admiradores. E muito pode ser dito e escrito sobre o que aconteceu depois. Todavia, grandes momentos têm um começo. É difícil dizer no que resultaria a arte brasileira sem a exposição de Anita Malfatti, em 1917. Ela não só mudou, mas acelerou os processos de mudança em nosso país. Por isso, ela merece uma homenagem especial. Salve Anita! Salve Anita Malfatti!