As cinzas e os homens

O escritor e o médium

A imprensa noticiou a possibilidade de divisão das cinzas de Gabriel García Márquez entre México e Colômbia. Os dois países reivindicam a “posse” dos restos mortais do autor de “Cem Anos de Solidão”. Também não duvido de que a Argentina entre na briga, já que foi lá que um editor acreditou na viabilidade da obra e publicou o êxito maior do autor colombiano. Fiquei pensando se partiriam o corpo ao meio caso o escritor não tivesse sido cremado, ou em três partes; quem ficaria com os membros, ou o tronco, ou a cabeça? O que diria Gabriel García Márquez de tudo isso? Ah, os seres humanos!

Recordei a pinimba entre duas cidades mineiras, Uberaba e Pedro Leopoldo, sobre o legado de Chico Xavier. Os ânimos de ambas as cidades ficaram exaltados, simultaneamente velados, na disputa pela herança do médium. Uberaba constrói um memorial e , por lá, virou museu a casa onde Chico morou. Pedro Leopoldo transformou em memorial a casa onde Chico nasceu; lá estão expostos todos os livros psicografados pelo médium e centenas de biografias do mesmo. Quando as prefeituras tratam do assunto é preponderante nas avaliações e ponderações das mesmas o potencial turístico, ou seja, a possibilidade de levantar grana em cima da lembrança de Chico Xavier.

Quem deve ficar com as cinzas de Gabriel García Márquez? Qual cidade merece os rendimentos sobre a memória de Chico Xavier?  Não sei. Essas discussões são inevitáveis já que os principais envolvidos, até onde eu saiba, não deixaram nenhuma instrução ou registro de decisão sobre essas questões. O que é certo é que o escritor nunca voltou para a Colômbia, mesmo com uma doença letal, e nem Chico, também doente, manifestou desejo de retornar para a cidade onde nasceu.

Tudo ficaria mais simples se planejássemos também nossa pós-morte. Não estou dizendo aqui dos meros interesses materiais – testamento, seguro de vida e similares – mas, além desses, também dos interesses afetivos e até mesmo religiosos. Como os egípcios! Qual razão para não pensar em nosso túmulo e no local onde queremos o mesmo? Registrar o tipo de funeral que pretendemos evitaria especulações e discussões sobre imagens, flores, velas e rituais funerários. Escolher a foto – para os túmulos que levarão fotos – e o epitáfio para a lápide. Como seria o anúncio do velório, da missa de sétimo dia? Havendo cerimônia religiosa, como seria esta, que imagem e qual texto estariam naqueles pequenos folhetos de lembrança e pedido de oração?

Vivemos preferencialmente ignorando a morte seja como algo definitivo ou como término da passagem pelo planeta. Vivemos a ilusão da eternidade, do infinito, entrando em parafuso perante uma doença qualquer. Ignoramos a marcha do tempo e negamos os sinais deste, às vezes de forma absurdamente radical; adotamos plásticas e outras práticas que deformam ou expõem a precariedade humana perante o tempo. A morte vem, inexorável, e os primeiros legados são os dilemas para os sobreviventes próximos. Com qual roupa vestir o defunto? Quais os rituais religiosos? O que fazer com os cacarecos todos? Afinal, ninguém discute o que fazer com joias e saldo bancário; mas e as cartas, os álbuns de retratos, as lembranças de viagem?

Conheço pessoas que são categóricas quando este tipo de assunto é abordado: “- Não é problema meu”, brincam, fugindo do assunto. Há outras que não revelam testamento; garantem com isso um melhor tratamento dos possíveis herdeiros. Todavia, me parece, a maioria das pessoas morre deixando um monte de situações para que outros solucionem; exemplo claro disso são as disputas como essas, envolvendo Gabriel García Márquez e Chico Xavier e milhares de outras, de pessoas comuns, mas que também deixaram coisas e cinzas.

Decisões e desejos de futuros defuntos, penso eu, devem ser discretas, íntimas, para pequenos círculos. De qualquer forma seria engraçado ver socialites disputando nas “caras” da vida as cerimônias mais sofisticadas para si mesmas; mas, insisto que é melhor que sejam discretas, sem grandes alardes. O máximo que permito publicar sobre meu fim, que espero esteja bem distante e que seja bem suave, tomo emprestado de um poeta maior:

… Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

(Fernando Pessoa – em “O guardador de rebanhos”)

Até mais!

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A morte e as flores de maio

Flor de Maio Foto By Valdo Resende
Maio de 2013

A ditadura da felicidade é um caso sério. Uma simples menção da lembrança do falecimento de meu pai – Dia 21 de maio fez oito anos – e já tentaram impor-me o diagnóstico de depressão. É como se a palavra morte determinasse um falante depressivo, ou o que é pior, que assume um comportamento depressivo. Nesse “assume” está implícito morbidez, prazer na tristeza e, entre outras, a suposição de que um indivíduo decide em um determinado instante que vai curtir uma depressãozinha básica.

Depressão, ao que parece, não é algo bem visto socialmente; nem desejável.  Também receio que, para muitas pessoas, é mais fácil conversar sobre novela e futebol que “aturar” um amigo triste. Recordar a data de falecimento de um ente querido é algo que parte de um momento intensamente triste, mas que pode conduzir ao culto de boas lembranças, de reverência, de gratidão.

Felicidade é um estado e isto implica ser algo passageiro. E nem sempre o oposto de felicidade é a tristeza, se considerarmos que a paz, estar em paz, é fundamental. Acho impossível ser feliz ao recordar a morte de meu pai, de meu irmão, de muita gente querida já falecida, todavia estou entre aqueles que permanecem em paz lembrando os que se foram.

Ninguém é obrigado a fazer coro no culto de alguém aos antepassados. Todavia, quando se ultrapassa o senso vulgar do “diagnóstico de revista”, conversar sobre as coisas boas de quando convivíamos com certas pessoas é mais que possível; é agradável e nos permite experimentar a tal tranqüilidade da alma. Então, penso que o problema não é falar sobre os finados (os mortos, não o feriado!). O problema é a morte.

Como falar sobre morte em uma sociedade onde a felicidade é um estado obrigatório?  Como refletir sobre finitude em um mundo onde seres buscam desesperadamente aparentar juventude, como se essa fosse infinita? Não pretendo que ninguém reveja seus conceitos, nem é intenção estabelecer diálogos cotidianos sobre enterros e velórios. O recado é: nem todos aqueles que recordam carinhosamente seus mortos são depressivos. E mais: pensar na nossa finitude é ótimo para avaliar o que vale a pena vivenciar cotidianamente.

Não cultivo a morte, cultivo plantas e a vida; e depois de dois dias de check-up, muito corridos, só hoje pela manhã foi que percebi a chegada das flores de maio no meu pequeno jardim. Ato contínuo foi abrir as cortinas para que as tímidas florezinhas recebessem merecida luz. Fiquei admirando a simplicidade das formas, a intensidade e sofisticação das cores; pensei em meu pai, em meu irmão e na vida que continua bela, extremamente bela, como as flores.

Flores de Maio. Valdo Resende

Papai tinha habilidade para fazer coisas tão distintas quanto dobradiças, velocípedes, estilingues; sempre tinha em mãos um bambu com um chapéu preso em uma das pontas; era a melhor maneira que ele tinha para colher frutos, da minha casa e das árvores dos vizinhos,  sem que a fruta caísse ao chão. Meu irmão gostava de plantas e tinha o hábito de ocupar espaços vazios plantando ipês e outras árvores decorativas. Cuidava de plantas em avenidas próximas de onde ele morava, levava mudas de árvores para todos os lugares, desde o bosque municipal, em Uberaba, até o jardim da casa de minha irmã.

Herdei de meu pai algumas habilidades manuais e me reconheço irmão de meu irmão no gosto pelo cultivo das plantas. Nada de triste, nem de mórbido, muito menos depressivo. É só a constatação da vida que recebi de meu pai Felisbino, que ficou melhor na convivência com meu irmão Valdonei e que vejo renovada nos vasos que florescem no meu pequeno jardim.

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Até mais!

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