Sinto que carecemos de nos aquecer ao redor de uma fogueira, de preferência assando pinhão, milho verde, batata doce… E ao chegar a noite, após rezar terço, todo mundo em festiva luta contra o frio, manter o fogo aceso, levantando bandeira pra dançar quadrilha.
Eu sei que é junho, o doido e gris seteiro Com seu capuz escuro e bolorento As setas que passaram com o vento Zunindo pela noite, no terreiro Eu sei que é junho!
O Junho de Pernambuco é o mesmo de Minas Gerais, embora o junho de Alceu Valença, em Olinda seja bem mais quente que os junhos da minha Uberaba. E, certamente, muitos graus acima do junho da nossa São Paulo. E o frio de junho, que às vezes entorpece, torna tudo um pouco mais difícil.
Eu sei que é junho, esse relógio lento Esse punhal de lesma, esse ponteiro, Esse morcego em volta do candeeiro E o chumbo de um velho pensamento
Di Cavalcanti também visitou o tema.
Alceu Valença, que faz música muito diferente de tudo aquilo que estamos habituados a ouvir, tem lá seu jeito de ver o mundo, de expressar sensações e acontecimentos. E a contrapartida desse junho cheio de festas pros santos – Antônio, João, Pedro – e de farras pelo futebol, é a música do pernambucano Alceu, quase premonitória ante tantas enchentes rolando por aí. O junho do compositor não é festivo, pelo contrário, é denso mesmo ante uma aparente suavidade. Chega a ser árido, como em certas regiões do país.
Eu sei que é junho, o barro dessas horas O berro desses céus, ai, de anti-auroras E essas cisternas, sombra, cinza, sul
E esses aquários fundos, cristalinos Onde vão se afogar mudos meninos Entre peixinhos de geléia azul Eu sei que é junho!
O mês começando, anunciando frio pela frente, mas propiciando festas nos dias 13 para Santo Antônio, 24 para São João e 30, para São Pedro. Momentos de alegria, amenizando a temperatura e abrindo esperanças para as férias escolares de julho.
Os santos em destaque na pintura de Djanira
Acabo de ver bem de perto o céu de Uberaba, onde consigo perceber as estações do ano. Lá também consigo visualizar possíveis tempestades, prever temperatura. É junho e sinto falta das festas de lá, das fogueiras nas portas das casas, das bandeiras elevadas em nome dos três simpáticos santos. Por aqui, mal temos espaço pra levantar um único mastro em homenagem aos santos, quanto mais fazer fogueiras ou dançar quadrilhas em plena rua. Mas somos felizes nesta São Paulo; e, do nosso jeito, também podemos celebrar, reverenciar e comemorar o mês, os santos.
Eu sei que é junho!
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Viva São João! Viva Santo Antônio! Viva São Pedro!
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Até!
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Nota: A música Junho, cujos versos valorizam este post é de Alceu Valença; também foi registrada por Maria Bethânia. Para ouvir a música clique aqui.
”- Triste fim da borboleta! Melhor não pensar”, pensava
Ela chegou àquela altura da vida em que nada havia a perder; mesmo querendo perder o que guardara para um possível príncipe, que nunca chegou; desconfiava que ninguém mais manifestaria interesse pela coisa. “- Coisa, coisa, pensava Dadinha, que palavra feia.” A idade chegou e a flor intacta, o símbolo máximo de pureza, a comprovação física da castidade havia se transformado em coisa.” – Triste fim da borboleta! Melhor não pensar”, pensava Dadinha.
O apelido veio na infância; Dadinha completou os primeiros quatro anos articulando uma única sílaba “– Dá!” Repetia, ensaiva entonações, praticava incríveis variações sorrindo, chorando, séria, ensimesmada, ao som único: “- Dá!” E virou Dadá, Dadinha. Desconfiava da criatividade familiar a partir do primeiro apelido. E não contabilizaria, ao longo de toda a vida, outros acontecimentos que pudessem desfazer a certeza aumentada ano após ano. Criatividade não era característica familiar e, pior, Dadinha veio com a mesma sina.
Sem conseguir grandes feitos na vida, Dadinha culpava a família pela falta de brilho, pela ausência de algo que a fizesse notável. Cansada de passar o tempo em branco, houve um momento em que se permitiu ser encaminhada para uma espanhola, autodenominada terapeuta alternativa. Esta conseguiu dois feitos notáveis: fez com que Dadinha acreditasse que sofria de complexo de inferioridade e, segundo, que o processo de cura começaria trocando-se o diminutivo pelo aumentativo no apelido da moça. Assim surgiu Dadona!
O resultado da terapia foi que Dadona ganhou olhares incrédulos, sorrisos de espanto e mais solidão. Uma única amiga consentiu em apresentá-la pelo novo nome: “ – Jurandir, esta é a minha amiga Dadona!”
Jurandir, mineiro das antigas, levou Dadona ao pé da letra, arrastando-a para uma rua deserta no começo da noite. Lá em Minas Gerais, dadona era quem dava muito. Acho que ainda é, embora com outros adjetivos. O rapaz ganhou bofetões de uma indignada Dadona que, mediante o ocorrido, reassumiu-se Dadinha.
Décadas depois, já em São Paulo, bebericando nas nossas tardes de sábado, Dadinha sempre me confidenciava: “- Bem que deveria ter aceitado as investidas de Jurandir. Pelo menos teria alguma lembrança do que é sentir um corpo por cima, por baixo… ou seria de lado?” Ficava com raiva de nem poder expressar uma preferência e achava a vida muito sem sentido. Tanto que neste junho de 2012, bem próximo do dia de Santo Antônio e acreditando que nada mais havia a ganhar, deixou promessas e simpatias de lado. Estava crente que seu caso pendia mais para Santa Rita dos Impossíveis do que para o santo casamenteiro. Foi quando o raio caiu.
Vingador não; Santo Antônio é milagreiro
Este onze de junho surpreendeu São Paulo com uma tempestade tenebrosa. Raios caíram sobre a cidade e um bem sobre nosso edifício; sim, Dadinha é minha vizinha. Moramos na Bela Vista e em nosso prédio foram muitos os apartamentos com vários eletrodomésticos queimados. Dona Jovelina, já citada neste blog, espalhou a notícia: “- Vingança de Santo Antônio! Ela desdenhou do Santo, blasfemou, ele queimou a casa dela e ela, de susto, ficou lá repetindo dá, dá, dá…”
Fiquei com pena de Dadinha. Assustada e em choque com o raio, seguido do barulho ensurdecedor do trovão, reverberando pelas paredes dos edifícios vizinhos, condenada a retornar ao dá, dá, dá infantil. Fiquei penalizado até hoje,quando cheguei da faculdade e encontrei Dadinha, toda produzida, com um sorriso escancarado, eufórica ao ponto de não se conter, me dizendo sem rodeios: “- Eu dei!”
Sem conter o riso, também não me contive, querendo saber o outro ator de tal ato. “– Jurandir! Reencontrei o Jurandir. Há muito que está em São Paulo e é eletricista, veio chamado pela síndica. E eu lá, só dizendo dá, dá, dá, ele achou que eu queria, aí, veio me pegando, me cutucando, me beliscando, me bolinando… Ah, seu Valdo, como eu pude viver sem isso!”
Entendi a felicidade, a produção em plena quinta-feira. Compreendi os caminhos tortos dos santos; o simpático Santo Antônio jamais se vingaria; pelo contrário, mostrou sua força nesse quase milagre. Olhando os brilhos e o batom acentuado de Dadinha, indaguei se ela estava saindo para novo encontro com o mineiro Jurandir. “– Que nada, vizinho. Vou pro boteco da Dinorah, vou recuperar o tempo perdido.” E saiu renascida, jovial, cheia de vontade de ser Dadona. Senhora de si, do seu corpo e do direito de ser feliz.