Vai passar

Aquele momento quando, inevitavelmente, somos levados a pensar no passado recente, avaliando os doze meses do ano.

Neste 2020 a sensação vem pesada, carregada de cansaço, cheia de ojeriza por usar máscaras contra o inimigo invisível. Uma vontade imensa de explodir os limites de uma prisão involuntária, injusta. E há perdas, muitas perdas, contínuas perdas enquanto assistimos, impotentes, discussões sobre como, quando e até o porquê de usarmos uma vacina.

Ah, 2020! Ano em que nossa saúde mental está sendo testada ao extremo! Ano em que assistimos o desenrolar de fatos que nos permitiram questionar a justiça divina, quando milhares entre os mais simples faleceram e os poderosos deixaram hospitais luxuosos em seus ricos e possantes carros. Ano em que alguns médicos tiveram que decidir quem salvar, em meio a tantos moribundos. Ano de dúvidas quanto ao que virá. Enlouquecidos, vimos gente questionando vacina, recusando vacina, alçados à condição de “cientistas” fazendo valer uma duvidosa “minha opinião”. A ciência não opina, constata. E até uns, decididos a tomar o pequeno líquido salvador, opinaram sugerindo um dane-se aos que não tomarem, como se a ciência dissesse que isso nos livra de um mal maior.

Duas palavras nortearam nossos dias deste ano: – Vai passar! Apoiados na teimosia humana, levados pela esperança, pela fé, e constatando a imensurável capacidade de adaptação perante o que se nos aparece pela frente, chegamos ao final do ano, dezembro, como se um calendário pudesse determinar o começo e o fim de cada coisa, de cada situação. O calendário marca, não determina. E a astrologia veio avisar aos crentes sobre seu calendário, que vai até março. Aviso astral: a coisa continua! E insistimos, vai passar!

Nunca uma “segunda dimensão” esteve tão visível. Jamais tivemos mundos tão paralelos quanto evidentes. Há gente que usa máscara, que guarda um distanciamento, lava as mãos, lava as compras. Há os que tiram as máscaras dentro de bares, restaurantes, que se aglomeram em centros de compras, em ruas comerciais; uns usam a máscara como adereço de queixo, outros tiram-na para falar enquanto manuseiam objetos. Uma parte da população vivendo o mundo via celular, tv, internet e a outra, em praias, festas, como se tais lugares estivessem imunes ao vírus mortal.

Há coisas boas em 2020? Muitas! Cientistas mostraram agilidade incontestável na definição dos caminhos para a cura. As pessoas definiram relações e hábitos possíveis ao universo virtual. Famílias se aproximaram via aplicativos, artistas se reinventaram buscando sobrevivência, convivência com a realidade imposta pela situação. E professores, aqueles que transformaram suas casas em emissoras de conhecimento; reinventaram métodos, ampliaram formas de atendimento e relacionamento com os alunos, principalmente os que mostraram a cara favorecendo a relação… E, acima de tudo, de todos, os profissionais da saúde encararam a pandemia de frente, arriscando-se e alguns perdendo a própria vida para salvar milhares, milhões de vidas.

Enquanto escrevo, alguma autoridade diz na tv que as crianças transmitem menos o corona vírus. Isso justifica o retorno as aulas e a transmissão aos chamados grupos de risco, presos em suas casas. As redes sociais divulgaram vídeo de um jornalista famoso questionando o trauma que ficará naqueles que perderam o ano letivo. Espero que o trauma seja menor que o fato de estarem vivos! Estamos vivos. E se há vida, diziam meus antepassados, há esperança. Há luta, trabalho, um inevitável seguir em frente.

Nunca mais seremos os mesmos. Todavia, nunca fomos os mesmos. Esse 2020 potencializou tudo isso, maximizou sensações. Nunca estivemos em situação tão clara, precisa, mostrada e compartilhada pelos meios de comunicação. E talvez seja esse o grande diferencial deste triste ano: aquele período em que presenciamos via satélite uma devastadora peste avançando-nos. E via os mesmos satélites, com nossos microcomputadores, nossos aparelhos celulares, convivemos e lutamos contra o mal. Não é possível afirmar com exatidão sobre como sairemos desta. Mas, sairemos. E, a maioria de nós, vivos. Sigamos em frente.

Parem tudo! É o natalício do Chico.

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Quase tudo bem. Um pouco tenso… Sem desconsiderar a realidade peço licença para lembrar que hoje, dia 19, é o dia do natalício do Chico Buarque de Holanda. É bom relembrar razões para homenagear o maior compositor brasileiro. Por aqui já implicaram com a palavra natalício… Bom, não quero saber quantos anos tem a figura, mas lembrar que foi neste dia que ele nasceu. E que ele criou temas para movimentos, passeatas, rebeliões e todos os afetos possíveis.

O CHICO é bom pra recordar grandes amigos! Ouço CHICO BUARQUE e vários seres muito amados emergem em meus pensamentos. Tenho a imensa sorte de ter muitas pessoas pra enviar um “Meu Caro Amigo”, mas nessa noite, a ausência de pessoas que amo cabe nesse “Desencontro”.

A sua lembrança me dói tanto

Eu canto pra ver se espanto esse mal

Mas só sei dizer

Um verso banal…

Volta e meia acontece uma discussão se há poesia em letras de música. Por mais que se afirme que letra de música não é poesia, tem aí o CHICO, com algumas letras provocando inveja aos poetas todos… E se alguns versos do Chico Buarque não forem poesia, pobre poesia que assim sai perdendo um refinado poeta.

Não chore ainda não

Que eu tenho um violão

E nós vamos cantar

Felicidade aqui

Pode passar e ouvir

E se ela for de samba

Há de querer ficar…

Para os mais novos uma informação legal; Chico canta a mulherada em letras memoráveis: “A Rita”, “Carolina”, “Januária”, a “Ana de Amsterdã” e várias outras. E quando o compositor coloca-se no lugar da mulher, compondo no feminino, deixa muito claro o quanto conhece da alma da mulher (talvez por isso ganhe todas!).  Pra não ficar aqui incensando o malandro vou mostrar abaixo como o indivíduo sabe ser corno (e com que classe!):

O meu samba se marcava na cadência dos seus passos

O meu sonho se embalava no carinho dos seus braços

Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão

Pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão…

Na conturbada história do nosso país, de uma “Roda Viva” implacável a inexorável “Construção” Chico Buarque ensina que tudo “Vai Passar”, “Apesar de Você” e do “Cálice”que, vez em quando, nos é imposto. Algumas letras de Chico soam sempre atuais, seja abordando questões sociais, ou a situação política. Eu fico emocionado, sempre, com “O Meu Guri”, ou com “Gente Humilde”, mas a que mais curto, desse CHICO político, é “Rosa dos Ventos”:

E na gente deu o hábito

De caminhar pelas trevas

De murmurar entre as pregas

De tirar leite das pedras

De ver o tempo correr

Mas, sob o sono dos séculos

Amanheceu o espetáculo…

Tem o Chico autor e compositor do teatro. Lá da peça “Roda Viva” ou só musicando a grande poesia de João Cabral de Melo Neto em “Morte e Vida Severina”. Há também o Chico que sofreu grande prejuízo quando a censura proibiu “Calabar”. Também imprescindível registrar uma grande parceria com Paulo Pontes, além da célebre interpretação de Bibi Ferreira para “Gota D’Água”. De todas as peças do Chico dramaturgo, ou de outras, para as quais escreveu canções, tenho um carinho imenso pela “Os Saltimbancos”; todavia é da “Ópera do Malandro” a música que escolho como representativa desse senhor CHICO teatral:

Oh, pedaço de mim

Oh, metade arrancada de mim

Leva o vulto teu

Que a saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quarto

Do filho que já morreu…

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Tem o CHICO do cinema, o CHICO dos grandes balés… Eu fico imaginando “Dona Flor e Seus Dois Maridos” sem a trilha de CHICO, na voz de SIMONE. O filme não seria o mesmo. Assim como citei um exemplo, do cinema, lembro outro, do balé “O Grande Circo Místico” que, além de “Beatriz”, tem a graciosa e divertida “Ciranda da Bailarina” na memorável parceria com Edu Lobo:

Não livra ninguém

Todo mundo tem remela

Quando acorda às seis da matina

Teve escarlatina

Ou tem febre amarela

Só a bailarina que não tem…

A primeira vez que estive bem próximo desse senhor foi numa noite, em São Bernardo do Campo, no Sindicato dos Metalúrgicos quando, penso,  a maioria dos presentes não imaginava um Lula presidente. E CHICO esteve lá, dando força ao Movimento dos Trabalhadores.

Entre seus pares, a elegância de CHICO é sempre elogiada. Esteve sempre distante de pinimbas e muito próximo de compositores, para criar grandes canções. Também é encontrado emprestando sua voz para os discos de diferentes cantores. Homenageou com brilho os músicos do Brasil, em “Paratodos”. Eita,moço fino!

Viva Erasmo, Ben, Roberto

Gil, Hermeto, palmas para

Todos os instrumentistas

Salve Edu, Bituca, Nara

Gal, Bethânia, Rita, Clara

Evoé, jovens à vista…

CHICO BUARQUE é o único compositor que ao escolher uma música lamento por outra, que fica de fora. Mas está na hora de parar. Vou lembrar mais duas razões que somam a inúmeras outras, levando-me a admirá-lo. A primeira, a incrível capacidade de colocar palavras “impensáveis” em uma letra musical; além de grande ousadia, a coisa sai perfeita, seja em “cada paralelepípedo da velha cidade”, ou na fabulosa “assentamento”, que remete a Guimarães Rosa:

Quando eu morrer

Cansado de guerra

Morro de bem

Com a minha terra:

Cana, caqui

Inhame, abóbora

Onde só vento se semeava outrora

Amplidão, nação, sertão sem fim

Ó Manuel, Miguilim

Vamos embora.

Perdoem o palavrão, mas um cara que coloca inhame, abóbora, em uma letra, e essa fica linda, merece:- Ô, filho de uma puta!Vai ser bom assim no inferno!

A segunda, para concluir. Nos meus delírios, ante algumas perdas, é uma canção de CHICO, em parceria com Cristóvão Bastos, que me acalenta a alma, me enche de esperança. Creio na vida além da morte e, para aqueles amados que se foram canto sempre:

Depois de te perder

Te encontro, com certeza

Talvez num tempo da delicadeza

Onde não diremos nada

Nada aconteceu

Apenas seguirei, como encantado

Ao lado teu.

Sem tristezas. Vamos preparar uma festa neste dia 19, nem que seja um singelo e particular brinde. É aniversário de CHICO BUARQUE. O cara que escreve livros, compõe para teatro, cinema; canta amores, grandes dores, alegrias, faz galhofas, é o dono da bola no seu Politheama e tem a admiração de todos os grandes compositores contemporâneos, suas canções gravadas pelos maiores intérpretes brasileiros.

Ave, Chico! Meu compositor preferido e mais querido, você bem que podia ter nascido no dia 18…

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Até!

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“Notas Musicais” :

as músicas citadas, respectivamente, são:

Desencontro – Chico Buarque e Toquinho

Olé, Olá – Chico Buarque

Quem te viu, Quem Te Vê – Chico Buarque

Rosa-dos-ventos – Chico Buarque

Pedaço de Mim – Chico Buarque

Ciranda da Bailarina – Edu Lobo e Chico Buarque

Paratodos – Chico Buarque

Assentamento – Chico Buarque

Todo o Sentimento – Cristóvão Bastos e Chico Buarque