Intrusa misteriosa, ou uma cueca como personagem

Foto: Flávio Monteiro

Dias de intenso calor quando se conjectura mudanças para a Patagônia, há que se pensar em paliativos além do famigerado ar-condicionado. Muitos vasos, ventiladores de teto, climatizadores arrastados por cabos conforme o cômodo em que estamos e, tão antigo quanto a primeira edificação, janelas abertas. Neste momento o sol brilha intensamente e um janelão escancarado facilita um ventinho frágil, fresco e ainda úmido, vindo do mar. De frente para a janela observo pássaros que buscam nosso bebedouro, outros que descansam na grade da sacada e ouço, entre um e outro barulho que vem da rua, o farfalhar das árvores próximas.

Sair de casa implica em deixar frestas abertas nos cômodos que dão para a rua e escancarar as janelas laterais. Pelas primeiras costumam entrar pássaros que dificilmente acham a saída. Ficam se debatendo nos vidros transparentes e, para evitar que se machuquem, o ideal é deixá-las fechadas. Dificilmente isso ocorre nas demais, provavelmente por conta de nossos amigos pássaros nunca terem sido estimulados com sementes, frutas ou mesmo água. E assim, deixando a janela da área de serviço semiaberta ao sair, ao voltar encontramos uma cueca colocada sobre o parapeito.

Surreal ter uma cueca listrada no parapeito da sua janela. Como assim? Caiu de onde? Quem teria colocado? Era uma cueca dessas comuns encontradas em lojas de departamento. De algodão, com listas coloridas predominando o verde. Uma cueca palmeirense? Imediatamente colocamos o corpo para fora e para cima na busca de decifrar o mistério. Não há varais suspensos nas áreas dos vizinhos e a cueca ter feito um movimento de bumerangue para cair em nossa janela foi hipótese descartada. Nosso apartamento está no primeiro andar, acima de um mezanino, parte dele com um parapeito no exterior onde, deduzimos, caiu a tal cueca e o encarregado da limpeza devolveu a intrusa – aparentemente limpa e em bom estado – para a nossa janela.

Uma invasão inesperada, ficamos observando a intrusa até devolvê-la ao embaraçado rapaz. A dita cuja foi parar na portaria, aguardando ser recuperada por alguém que deveria chegar e indagar: alguém devolveu minha cueca? Deve ter caído! Pior, o proprietário se achar vítima de roubo: tem ladrões no prédio! Entraram na minha área e roubaram minha cueca! Os gracejos continuaram em decorrência do ocorrido até o desfecho quando o porteiro sentenciou: Até quando vou ficar olhando para essa cueca? E lá se foi, provavelmente com o lixo comum, já que desconheço serviço de cuecas recicladas.

Anarina de volta, com sol e brisa

Que venham dias amenos!
Que venham dias amenos!

Se o sol vem com calor insuportável, aumenta a vontade de não fazer nada. Fico feito jacaré, quietinho, tentando suportar a temperatura, achando que é tudo culpa do cimento armado, cobrindo a imensa região onde está a cidade de São Paulo que assim, fica impermeabilizada. As pessoas confundem terra com sujeira… E tocam a jogar cimento em quintais, jardins, pequenas áreas que somadas, arborizadas, melhorariam o clima da cidade.

Insisto sempre em que todas as pessoas deveriam ter umas plantinhas dentro de casa, nas soleiras das janelas, criando jardins internos ou aéreos, como o do topo do edifício bem em frente ao que eu moro. Nunca é o bastante aproveitar todo e qualquer espaço para uma plantinha. Só de olhar pro verde a impressão é de conforto, frescor. O verde na cabeça lembra o mato, para a zona rural de onde todos nós, mesmo que remotamente, viemos.

Eu quero uma casa no campo

Onde eu possa compor muitos rocks rurais

E tenha somente a certeza dos amigos do peito

E nada mais…

Lá pras bandas de Minas, onde imperam montanhas e chapadas, conta minha irmã que o calor também se faz presente. E junto com o calor vem aquele incômodo das perceptíveis mudanças planetárias. Se a gente muda, se ocorrem mutações, é óbvio que o planeta, como um todo, também passa por transformações. O problema são os urubus de plantão alardeando o fim drástico, o tal aquecimento que pode resultar em degelo, muita água, muitas inundações, “revertério” total!

Se o calor tomou cidades, os campos e matas, pra perto do mar é que não vou. Vai que rola um tsunami! Eu nado tanto quanto um martelo. Mar, comigo, é pra molhar o pé e olhe lá! Passaria uma vida inteira olhando a inconstância das ondas, tão indecisas no eterno vai e vem; a imensidão, o mistério. Das expressões mineiras, uma das que mais gosto: Eta marzão grande, sô! Tão imenso, profundo, merece respeito. Não é pra ficar de bobeira perto dele.

Andei por andar, andei

E todo caminho deu no mar

Andei por andar, andei

Nas águas de Dona Janaína…

O pior é ainda ter que, pra chegar até a costa, enfrentar horas de decida insana, entre milhares de veículos. Com esse calor, permeado de momentos amenos, eu sonho mais é com vida mansa, sem ter que fazer isso ou aquilo. Além do mais, calor me deixa sem dormir e, consequência disto, uma irritação, uma vontade de, no final das contas, não fazer nada. Viver de brisa é sonho; mas, que eu gostaria, ah, isso sim, seria legal! Viver de e na brisa. Quer coisa melhor?

Vamos viver no Nordeste, Anarina

Vamos viver no Nordeste

Deixarei aqui, meus amigos, meus livros

Minhas riquezas, minha vergonha

Deixarás aqui, tua filha, tua avó,teu marido

Teu amante

Aqui, faz muito calor

No Nordeste faz calor também

Mas lá tem brisa

Vamos viver de brisa, Anarina

Vamos viver de brisa

Sempre que o calor toma conta relembro Anarina. E se ele me faz falta, aí sim, chamo por Anarina. Anarina sempre sai dos versos de Manuel Bandeira para atender meus chamados. Ela me dá sorte! Ontem foi tiro e queda: foi só lembrar Anarina que a chuva caiu, refrescando a noite e tornando este um domingo melhor. Tomara que continue assim, com mais dias amenos nesta semana. É o que desejo para todos.

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Até!

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Referências:

Casa no Campo – Zé Rodrix / Tavito

Quem vem pra beira do mar – Dorival Caymmi

Brisa – Música de Paquito sobre poema de  MANUEL BANDEIRA.

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Saudade do calor do Piauí

Meus sobrinhos João e Antônio felizes, no calor do Piauí.

Frio dói. Qualquer mínima parte do corpo, quando exposta, dói. Toca a ficar encolhido, envelopado, enrolado, acebolado. Saudade dos 40ºC de São Raimundo Nonato. Muita e real saudade. Calor, por maior que seja, incomoda, mas não dói. É só arranjar uma bela sombra, de preferência acomodado em uma rede, com uma boa jarra de suco de caju do lado, um bom livro, ou um bom som e a vida, vira canção.

A vida aqui só é ruim

Quando não chove no chão

Mas se chover dá de tudo

Fartura tem de montão…

Conheci bem o município de São Raimundo Nonato, no Piauí, antes de qualquer outra localidade nordestina. Cheguei de avião, cheio de curiosidade, em Petrolina; lá estava o aeroporto mais próximo para o sudeste do Piauí. Na cidade pernambucana fui molhar os pés no Rio São Francisco – atendendo pedido de meu pai – e atravessei a ponte para Juazeiro, na Bahia.

…Juazeiro nem te lembras desta tarde
Petrolina nem chegaste a perceber
Mais na voz que canta tudo ainda arde
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê…

Magicamente conheci três Estados nordestinos em uma única tarde. Desci em Petrolina, calor escaldante, aproveitei o frescor das águas cantarolando o verso de Caetano Veloso “Velho Chico vens de Minas” e, viajante, atravessei a ponte, de passagem pela Bahia para, poucas horas depois, entrar no Piauí.

Uma tarde no Rio Parnaíba, no Piaui. Nem tudo é caatinga por lá.

A caatinga é uma experiência inesquecível. O calor exasperante no clima semiárido assusta e principia nosso entendimento do que seja o vaqueiro, o sertanejo. De imediato recordei os cangaceiros e entendi suas roupas de couro, seus aboios tristes enfrentando os espinheiros, lutando pela própria vida. Mas é sol e as tardes são mornas, cálidas; as noites são gostosamente frias.

Vamos viver no Nordeste, Anarina.
Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha.
Deixaras aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante.
Aqui faz muito calor.
No Nordeste faz calor também.
Mas lá tem brisa:
Vamos viver de brisa, Anarina.

Ah, esse frio que dói. Demais! Muito! Só faz aumentar em mim o desejo de ir embora; quero viver meus últimos dias sob o sol! Sonho com o calor do nordeste. Um dia, pego minha Anarina, e vou. Quero o norte de Minas, o sul da Bahia, o sudeste do Piaui, o litoral das Alagoas…

Sombra, uma bela rede. Tudo é melhor no calor.

Enquanto isso não acontece, fico aqui, com minha taça de vinho tinto, quase “bebinho da silva”, correndo o risco de, enquanto bebum, chorar com cena de novela e invejando Gabriela, com todo o calor que ela não promete, tem.

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Até mais.

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Notas:

Os trechos citados, respectivamente, são:

O último pau de arara, canção de Venâncio,Corumbá e J. Guimarães

O ciúme, canção de Caetano Veloso

Brisa, poema de Manoel Bandeira

As fotos são do arquivo pessoal da minha comadre Vânia Lourenço Sanches

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