Domingo brasileiro

domingo brasileiro
“é a parte que te cabe neste latifúndio” (Chico Buarque)

A justiça é uma abstração. Esta foi a lição desse domingo, 8 de julho. Pode-se dizer também que a justiça é um jogo onde há espertos e poderosos disputando a última palavra, o caminho a ser seguido, a norma a ser acatada. Verdade e justiça permanecem, temporariamente, sob a tutela do mais esperto ou de quem tem mais poder. Comemorar resultados desse domingo é, no mínimo, ingenuidade perante o espetacular “jogo da justiça”. Num próximo lance, jogo virado, e o certo será outra coisa, o justo será questionado pelo lado vencido e a verdade… Santo Deus, o que é verdadeiro? O jogo é o real; a realidade é esta que vivenciamos como jogo de egos, jogo de palavras, de leis, de preceitos, de autoridades.

Desde quando tinha 17 anos que desconfio da justiça instituída e representada por advogados, delegados, juízes, desembargadores, ministros… Sequestrado perante várias testemunhas, tendo deixado rastros de provas materiais, e portando consequências físicas das agressões sofridas, presenciei a luta quixotesca de meu pai contra gente rica e poderosa. Perdemos o processo no emaranhado vai e vem da justiça e, dez anos depois, testemunhas oculares esquecidas, provas materiais deixadas de lado, o outro lado livrou-se de penas por insuficiência de provas.

Provas não são nada. O jogo é o que conta para a manutenção de interesses específicos. Esse mesmo jogo que levou ao fracionamento dos salários dos professores mineiros ou, em outra esfera, ignora cientistas e instituições especializadas para, sob a tutela de alguns jogadores permitir o uso de agrotóxicos na produção agrícola.  O que farão as professoras mineiras perante quem determinou o caos salarial em que vivem? São professoras, não profissionais da política e da justiça. Precisam confiar nos líderes sindicais, nos representantes legais, faces dos dois lados do jogo que determinará se haverá ou não dinheiro para pagar o supermercado. E os agrotóxicos?

Uma amiga cria galinhas em uma simpática chácara próxima de São Paulo. Ela pagou uma bela grana para que empresas especializadas avaliassem o solo, determinando se seria possível o plantio no mesmo. Resultado positivo, surgiu uma horta, além de uma pequena criação de galinhas. Essa amiga faz festa quando chove. No mais, cuida de tudo sem veneno, sem “remédio”.  O “outro lado” resolveu criar uma série de restrições da comercialização de orgânicos pelos pequenos produtores. Um jogo no qual serão controlados com afinco aqueles que não colocam veneno em suas hortas e na alimentação dos animais.

Herdei de meus pais o lado quixotesco. O lado daqueles que sem dinheiro e destituídos de poder têm como possibilidade de vida a alienação, a omissão, ou a luta, a resistência, o trabalho. Escolhi permanecer atento, resistindo e, mesmo sabendo-me fraco, disposto à luta. Nada heroico. Nada extraordinário. Lutar “é a parte que te cabe neste latifúndio”, para lembrar a velha canção de Chico Buarque que, é bom frisar, é a trilha do funeral de um pobre coitado.

Comemorar a justiça, enaltecer o direito, reconhecer a legalidade? Nada. Um jogo! Um complicado tabuleiro de xadrez para gente especializada. Os fatos, os crimes, as provas, as testemunhas são peças manipuláveis dessa partida assistida por todos nós, também manipulados.

 

Até mais!

Palavras do Juca

juca chaves

A situação do Brasil vai muito mal
Qualquer ladrão é patente nacional…
Porém, ladrão… isso tem pra todo o lado!
Caixinha, obrigado!(1)
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Política confusa, ninguém chega a conclusão
Um lado diz que sim, e o outro diz que não… (2)
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…Aqui não há problemas, pra que tanta confusão?
O povo passa fome, mas o Brasil é campeão! (Foi, Juca, foi!) (3)
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Enquanto a nossa imprensa decadente
Se ocupa com farrinhas de garoto
Deveria zelar por essa gente inocente
Que marcha cada vez mais para o esgoto
Deveria apontar os criminosos
Que arruinando a prole ta maltrapilha
Da massa arranca impostos clamorosos, tão custosos
Pra verba dos cartórios em Brasília, que maravilha! (4)
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Enquanto os empresários, operários da cobiça
Investem lá no norte, no norte da Suiça
Democracia é isto, é trabalhar contente
Pro caviar do nosso presidente… (5)

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(e como nem tudo é só tristeza, Juca também fala de amor)
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Eu quero uma mulher
Que seja diferente
De todas que eu já tive
De todas tão iguais
Que seja minha amiga,
Amante e confidente
A cúmplice de tudo
que eu fizer a mais… (
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Na alameda da poesia
Chora rimas o luar
Madrugada e Ana Maria
Sonha sonhos cor do mar
Por quem sonha Ana Maria
Nesta noite de luar? (7)
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(1) Caixinha, obrigado!; (2) e (3) A Situação; (4) Crítica das Críticas; (5) Honestidade; (6) A Cúmplice; (7) Por Quem Sonha Ana Maria; TODAS DE JUCA CHAVES.

Nós, as saúvas.

Tenho tido dificuldade em escrever neste blog. E, por razões similares, tento falar pouco. O difícil exercício de calar, pensar, compreender, meditar, ponderar, refletir, raciocinar, entender e, mais difícil que tudo: aceitar, reconhecer, perdoar, conviver…

Há muito, quando entrevistei a atriz Marilena Ansaldi, ela afirmou que estava tudo muito ruim; e que iria piorar. Ansaldi foi bailarina e desenvolveu posteriormente uma brilhante carreira de atriz criando espetáculos contundentes, que demonstravam além da capacidade de criar, uma notável forma de ver e pensar o mundo. Desde tal entrevista, volta e meia recordo a reflexão da atriz; reflexão não, conclusão: vai piorar.

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Quando trabalhei com Antunes Filho, em uma das versões de Macunaíma, o diretor falava da morte da personagem, associando a isso um estranho hábito que nós brasileiros temos, tal qual saúvas, de levar veneno para dentro das nossas tocas. Haveria momento em que, conscientes ou inconsequentes, levaríamos o veneno mortal para dentro de casa, dando de ombros ao risco de matar todo mundo. Terrível!

Penso que é difícil, na atual conjuntura, discernir alimento e veneno. Informação e mentira. Temos imprensa partidária que alardeia isenção; frequentamos igrejas que trocaram indulgência por sofisticadas formas de dízimo, comercializando céu, saúde e paz; nossos dirigentes de todos os partidos convivem com corruptos, colocando-se no mesmo balaio e evidenciando verdades populares do tipo dize-me com quem andas…  Vivemos sob um sistema que cria necessidades em nome do capital e, acima de tudo, nos diferenciamos das saúvas por um infinito individualismo. Somos “a saúva”. Os outros…

Os outros são aqueles com os quais somos obrigados a viver, a suportar. Para tanto, temos deuses e santos que nos são convenientes, tremendamente incômodos se temos que seguir ensinamentos tipo “amar ao próximo”. Somos um país cristão dividido entre católicos e evangélicos competindo entre si para garantir adeptos, sempre afirmando que somos irmãos; garantimos novas chances de retorno via espiritismo e, por atavismo, ignoramos diferenças sociais quando precisamos do apoio de um pai de santo. Quando sofisticados, cultuamos exóticas crenças, daquelas para quem pode viajar e conhecer a Índia, a China, ou mais próximos, os caminhos de Compostela.

Cuidamos do que somos, do que é nosso, do que nos diz respeito. Não importa quão alto tenha que ser o muro, quão resistente tenha que ser a armadura e eficaz o sistema de segurança. Precisamos nos defender… Do outro.  Lutamos também pelo o que pensamos, frequentemente, em contraposição ao pensamento de outros. Em atitude exacerbada, parece que o ideal é destruir quem pensa diferente. Política, religião, opção sexual… Interessa aquelas ideias e posições que são as nossas.

Somos saúvas e carregamos, com dificuldades de discernimento, o alimento e o veneno. Tal qual a chamada praga, destruímos muito do que nos cerca. Piores que formigas, ameaçamo-nos uns aos outros, colocamo-nos em perigo e, ameaçados, miramos o outro, sem conseguir enxergar o veneno sobre nossas cabeças.

Está difícil concluir, pensar saídas, vislumbrar soluções. A única pergunta que não me sai da cabeça: o que pode ocorrer para que ocorra uma intensa e honesta virada?

Até mais.

A delicada arte da escolha

Nas vésperas de uma eleição é assustador ler o título no UOL: “A dois dias da votação, 2.830 candidatos podem ter eleição anulada com base na Lei da Ficha Limpa.”

Fernando Sabino, o escritor mineiro, escreveu que “O diabo desta vida é que entre cem caminhos temos que escolher apenas um, e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove.” Nas atuais eleições, o perigo não é escolher um, entre os 2.830 que aguardam decisão judicial, mas escolher um entre os milhares de outros corruptos que, por enquanto, livres do braço da justiça, ainda estão com a ficha limpa.

Não vivemos com nostalgia de escolhas políticas. Vivemos com receios, já que é raro o político de caráter íntegro. E também cumulamos frustrações perante escolhas de candidatos que, no poder, mostraram a face corrupta, a indiferença aos reais problemas da sociedade, a falta de cumprimento de promessas, além de evidentes crimes em ações que nossa justiça, filha predileta da preguiça, demora a julgar.

Um número considerável de brasileiros tende a menosprezar uma eleição. Cansados e desiludidos com as atitudes de muitos políticos, e com a lerdeza da justiça, preferem o desdém, o descaso. A vida é lenta na esfera política e exageradamente rápida nos efeitos da ação dos políticos sobre a população. Assim, é compreensível o desalento, o desânimo de muitos dos nossos irmãos brasileiros.

É delicada a nossa responsabilidade nesse momento de escolha. Temos que esquecer os aparentes cordeiros, a fé dos falsos profetas; precisamos ignorar aspectos físicos, já que beleza é totalmente dispensável, voz bonita também. A excelente fluência verbal é arma poderosa de enganadores. Sobretudo temos que tomar cuidado com alianças e apadrinhamentos. Tão velha quanto a sociedade humana, as alianças são mero jogo de interesses particulares ou de pequenos grupos. Quem escolher?

Não há como negar que avançamos. Por mais que apareçam subterfúgios, por mais atrasos que imponham à justiça, estamos avançando. Esta é a história. De triste herança, nossos coronéis políticos estão em extinção; a população, cada vez mais, exige honestidade, transparência, respeito. Um processo lento, mas inexoravelmente destinado a avançar.

Não tenho a ilusão de ver o mundo sonhado por muitos, mas compartilho da fé na construção via pequenos passos. O passo deste final de semana é votar com a certeza da coisa certa; rezando para que não tenhamos os olhos desviados pelos falsos brilhantes políticos, nossa inteligência entorpecida pelo discurso enganador. Vamos em frente, colocar nosso voto de confiança em um mundo mais digno. Lembrando, mais uma vez, o genial Fernando Sabino, vamos em frente, com esse pensamento na cabeça:

“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”

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Bom final de semana!

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Notas: as citações de Fernando Sabino são do romance “O Encontro Marcado”.

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