O convalescente

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Prédio branco entre jardim verde. Degraus brancos de mármore. A enorme porta de ferro também branca, como os corredores, os quartos, as cortinas, e todas as outras dependências. Silêncio no ambiente calmo. Prédio branco entre jardim verde. Paz e esperança ante a dualidade. O início e o fim. A vida e a morte. O hospital. Dualismo na mente e no espaço. Tão grande! Tanto quanto a duplicidade de sua existência paradoxal. Ocaso no interior dos silenciosos. E o convalescente, em seu silêncio que não é ocaso, vislumbra a certeza do amanhã. 

Está ali há tanto tempo! Esquece que existe a esperança em torno da paz, de tanto branco à sua volta. Mas, se lembra dos primórdios; as manhãs de matiz colossal; o pôr de sol ametista… Tudo distante, irreal. Os primórdios ficaram no jogo de bola no campo, junto aos demais meninos. No galho da mangueira, que tanto gostava, que talvez já esteja seca. Ficaram os primórdios no gládio do florão da sala… Nem se lembra mais de quem, com quem! Sim, ficaram longe; estão distantes. Os primórdios…

Lembra-se do idealismo da adolescência; das escolhas e renúncias; as incertezas diárias; a onisciência; as contemporizações frustrantes; a escolha única e decisiva; o assumir do caminho, a maturidade. A Universidade foi-lhe a melhor época, sem dúvida! As discussões filosóficas, a literatura fascinante. Lord Byron, Victor Hugo; os romancistas. O realismo na vida de Bentinho e Capitu. Ah! Machado de Assis, de Dom Casmurro e Esaú e Jacó.

O diploma universitário, o magistério. Vinte anos ensinando que a arte de compor trabalhos em prosa e verso, chama-se literatura; que Shakespeare é grande dramaturgo da Inglaterra, e que Dante Alighieri é o maior, entre os maiores italianos. Os jovens preferem os mais atuais. Ele não se lembra bem há quanto tempo se encontra no hospital. Os jovens, seus alunos tinham uma tendência para as reformas literárias de autores como Mário de Andrade, Hemingway… não gostava, como não simpatiza ainda com a literatura moderna. Infelizmente, a literatura de Arcádia e de Parnaso não são mais criadas; frequentemente esquecidas, guardadas nas estantes. 

Não se recorda da última visita que lhe fez a esposa. Faz tempo que ela não entra por aquela porta, agora somente aberta pelas enfermeiras; mas, ele se lembra de como ela entrou em sua vida. Gide; ele se deliciava ante a perspectiva à renúncia dos noventa e nove. “Professor, quando se opta por amor, não existe nostalgia; escolhe-se e pronto”. O ginásio estadual, muitas alunas… ela tinha no olhar o azul celeste. Era diferente porque conhecia o amor. Foi com a aluna que ele aprendeu a lição do dom de si. Amar é dar-se por inteiro.

E o amor saiu das páginas líricas de Dirceu, para fazer morada no coração dele. Como se modificou a partir da consciência de amar! Ela pertencia à Ação Católica. Ele já se esquecera das práticas religiosas domingueiras, o que tanto preocupava sua mãe. Então, passou a ver o cristianismo sob outro ângulo. E, entre o Realismo e o Romantismo, abriu-se-lhe um novo campo de estudo que não pertence à nenhuma escola literária. A Teologia deu-lhe maior gosto pela vida. Tomás de Aquino e Santo Agostinho mostraram-lhe Deus nos passos vivos do cotidiano.

A alegria sem igual, com a chegada do primeiro filho, que se repetiu por mais duas vezes. Era doce a espera ante a certeza da chegada. A véspera era linda devido ao oval na forma esguia do corpo amado. Forma de pôr de sol. Espera de nascente. Ele viveu novamente através da vida dos filhos. Viu seus primórdios nas algazarras infantis. A Universidade que voltou pelos assuntos dos filhos. A estrada andou na roda da vida, e o tempo caminhou com a estrada. A velhice chegada, e novamente os primórdios na presença dos netos.

Sua filha… sim, sua filha! Amou tanto a vida, a música de Beethoven! Não deveria ter tido morte tão estúpida. O susto, tal qual os que levara na infância com a ilusão dos fantasmas, assombrações. O susto. O enfarte.

Às vezes, falta-lhe a memória, mas há momentos em que revê tudo e todos em sua mente. Em outros, o vazio é tão imenso que ele sente vislumbrar o eterno. Sua esposa que não vem; a infância que ficou; a ausência da filha e a lucidez, que começa a se fazer ausente também.

Prédio branco entre jardim verde. Degraus brancos… Entra um homem de negro. Um negro diferente, no qual está contido silêncio, branco de paz. O homem chega bem próximo do leito do convalescente que se desfaz, olhando intensamente o velho professor, sussurrando: “Por esta unção e Sua mercê suavíssima, que o Senhor te perdoe todo e qualquer pecado que tenhas cometido pela vista, pelo ouvido, pela boca… “

Os primórdios ficaram na lembrança de quem com ele viveu.

 

Valdo Resende / Santo André-SP , Verão de 1982.

 

Notas do autor: 

 

Quando cheguei por aqui, no finalzinho da década de 1970 tinha dois objetivos: fazer teatro e literatura. Em 1982 tive a publicação de “A mulher que eu amo”, um conto, em revista de circulação nacional. No mesmo ano fui premiado com “O convalescente”, no VIII Concurso de Contos do DEPEC – Departamento de Educação e Cultura, da Prefeitura Municipal de São Caetano do Sul, São Paulo. Neste 2020 tenho como projeto a dedicação “quase” irrestrita à literatura. O “quase” fica por conta do meu amor ao teatro e ao desejo de divulgar neste blog, os trabalhos de amigos e de profissionais a quem admiro. 

 

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