Penso sobre a expressão “delação premiada”, recordo Cecília Meireles e tenho receios. Um bandido, tornado delator é melhor que o outro, o delatado? Nesses tempos difíceis, cheios de acusações, interrogatórios… O que pode dizer alguém para livrar a própria sorte do fim tenebroso? Do que alguém é capaz, já descoberto em seus crimes, na tentativa de ganhar menor tempo na prisão?
O Romanceiro da Inconfidência é uma das obras geniais da literatura brasileira. Todos os fatos ganham conotações riquíssimas na profunda poesia de Cecília Meireles. Gosto de todo o livro. Admiro cada poema, cada romance.
Vivemos tempos difíceis e temo, sobretudo, pela saúde do meu país, pela paz, pela garantia dos direitos constitucionais. Quero lembrar, neste momento, o “Romance XLIV ou da testemunha falsa”. Vale a pena ler e, sobretudo, refletir dentro da atual perspectiva.
Romance XLIV ou da testemunha falsa
Cecília Meireles
Que importa quanto se diga?
Para livrar-me de algemas,
da sombra do calabouço,
dos escrivães e das penas,
do baraço e do pregão,
a meu pai acusaria.
Como vou pensar nos outros?
Não me aflijo por ninguém.
Que o remorso me persiga!
Suas tenazes secretas
não se comparam à roda,
à brasa, às cordas, aos ferros,
aos repuxões dos cavalos
que, mais do que as Majestades,
ordenarão seus Ministros,
com tanto poder que têm.
Não creio que a alma padeça
tanto quanto o corpo aberto,
com chumbo e enxofre a correrem
pelas chagas, nem consiga
o inferno inventar mais dores
do que os terrenos decretos
que o trono augusto sustêm.
Não sei bem de que se trata:
mas sei como se castiga.
Se querem que fale, falo;
e, mesmo sem ser preciso,
minto, suponho, asseguro…
É só saber que palavras
desejam de mim. – Se alguém
padecer, com tanta intriga,
que Deus desmanche os enredos
e o salve das consequências,
se for possível: mas, antes,
salvando-me a mim, também.
Talvez um dia se saibam
as verdades todas, puras.
Mas já serão coisas velhas,
muito do tempo passado…
Que me importa o que se diga
o que se diga, e de quem?
Por escrúpulos futuros,
não vou sofrer desde agora:
Quais são torpes? Quais, honrados?
As mentiras viram lenda.
E não é sempre a pureza
que se faz celebridade…
Há mais prêmios neste mundo
para o Mal que para o Bem.
Direi quanto me ordenarem:
o que soube e o que não soube…
Depois, de joelhos suplico
perdão para os meus pecados,
fecho meus olhos, esqueço..
– cai tudo em sombras, além…
Talvez Deus não me conforme.
Mas o Inferno ainda está longe,
– e a Morte já chega à praça,
já range, na Ouvidoria,
nas letras dos depoimentos,
e em cartas do Reino vem…
Vede como corre a tinta!
Assim correrá meu sangue…
Que os heróis chegam à glória
só depois de degolados.
Antes, recebem apenas
ou compaixão ou desdém.
Direi quanto for preciso,
tudo quanto me inocente…
Que alma tenho? Tenho corpo!
E o medo agarrou-me o peito…
E o medo me envolve e obriga…
– Todo coberto de medo,
juro, minto, afirmo, assino.
Condeno. (Mas estou salvo!)
Para mim, só é verdade
aquilo que me convém.
Nota:
O Romanceiro da Inconfidência foi lançado em 1953. Ao longo do mês de março publicarei alguns textos ou parte de textos de poetas, escritores e dramaturgos que foram essenciais na minha formação. Quero dividir com os leitores deste blog trechos preciosos que, bom enfatizar, nunca é demais divulgar.
Pegou pesado, Valdo! Gostei muito! Beijo.
Incrível!