O último texto

Foto: Flávio Monteiro

Não bastasse a pandemia, longe do fim com mais de 500 mortes diárias apenas em nosso país, agora pesa sobre nossa cabeça a possibilidade de uma guerra atômica. Não tendo real noção da abrangência de um ataque nuclear, seja de que lado for, não podemos afirmar que estaremos aqui no próximo mês, ou mesmo, no pior quadro, pode ser que tudo termine amanhã. E daí, penso: caso possível, diante do fato qual seria a indagação do universo?

Considerando a idade da Terra, acima dos 6 bilhões de anos, e levando-se em conta que o planeta segue transformando-se, indiferente às mazelas que provocamos sobre a superfície terráquea, o que são os poucos milhares de anos dessa coisa chamada ser humano diante da imensidão do tempo do planeta, da galáxia? E o que importa, o que somos nós perante toda a Via Láctea e outras possíveis vias por nós desconhecidas?

Das criações divinas que, até onde vai nossa compreensão estão em harmonia, consoantes com entornos, com o que lhes é necessário, o ser humano é a coisa que deu errado. Um equívoco. Se há um Deus e se ele criou o espaço infinito, de imensurável beleza, o primeiro erro humano foi acreditar-se imagem e semelhança de Deus. Sejamos honestos! Entremos em nossos quartos e nus, diante de um espelho, encaremos quem realmente somos. Antes disso, um alerta: o que se acredita ser beleza é, constantemente, consequência de delírio emotivo materno. E, segundo alerta, para um exame de consciência livremo-nos de todas as certezas caso não estejam carregadas das dúvidas que geram crescimento.

O espelho honesto refletirá um ser obtuso e, se brasileiro, limitado à polarização vigente. Incapaz de refletir em direção às causas, limita-se a mexer e remexer feridas, “torcendo” por um ou outro, criminalizando um ou outro para esquecer rapidamente o desastre presente, transferindo posturas e interesses para a próxima catástrofe. Produto pensado para consumir, vai para o arquivo dos acontecimentos situações tipo as enchentes em Petrópolis, o ser humano na belíssima praia brutalmente espancado até a morte e a iminente guerra atômica… neste momento em que escrevo, a contenda amenizada por uma partida de futebol – ouço os gritos frenéticos da torcida e, mais a noite, tudo momentaneamente deixado de lado pela competição da hora na televisão.

Esse brasileiro, perante o espelho, dificilmente levará em conta seu estado em função de uma ditadura militar, que excluiu da rede escolar a reflexão propiciada pela filosofia ou que é resultante da vigente educação neoliberal formando tecnicistas com rara capacidade de interpretação, e quase nula capacidade de fazer ciência. Costuma ficar indignado com situações como a do ser humano que viaja para fazer turismo sexual em plena guerra, mas em seguida se diverte perguntando via meme “qual mundo deixaremos para a Rainha Elizabeth?”.

Vizinhos residentes acima da minha cabeça jogam ovos em frequentadores do bar em frente. Esses mesmos vizinhos, incapazes de seguir normas mínimas como dia e hora para recolher o lixo, frequentam outro boteco, da esquina, e lá discutem o destino do conflito mundial entre um copo e outro de cerveja, assoviando para uma bunda ocasional que desce pela avenida. Nos grandes ou pequenos fatos, somos sempre os mesmos.

Nu perante o espelho vejo-me piada divina. Brinquedo que, não dando certo, será apagado da face do planeta. O certo é que este prosseguirá, os continentes afastando-se fisicamente em programa que desconhecemos qual fim. Grandes merdas uma guerra atômica! Dane-se o fim da humanidade. O que serão estes tristes episódios no histórico de bilhões e bilhões de anos vividos pelo planeta? Uma mancha, alguns resquícios entre camadas e camadas que formadas, destruídas e reformadas, constituem-se na massa que flutua em equilíbrio com o sol, em harmonia jamais atingida pelo ser humano.

Prestes a sucumbir ao desalento, continuo olhando para o espelho e imagino-me distanciando do quarto, do edifício, da esfera terrestre. Tento ignorar limitações e viajo por galáxias, atravesso buracos negros, encontro milhares de outros planetas, navego pelo multiverso e, insano, olho para trás, tentando visualizar a terra, aquela que “por mais distante, o errante navegante jamais esqueceria”. E antes da última viagem, certamente há um único e derradeiro texto a ser escrito, uma única palavra direcionada ao Responsável pela coisa toda:

Socorro!

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