O ser humano não escolhe apenas por instinto; diferente de qualquer animal, tem a capacidade de estabelecer critérios, analisar possibilidades e ponderar sobre as próprias decisões. Essa característica que coloca indivíduos em escala superior aos demais animais é um tanto mais complexa, já que existe o outro, o grupo familiar, a sociedade. Tomar uma decisão envolve ética, religião, filosofia, cultura, hábitos, a trajetória individual, a história…
“Lili Marlene” (Lili Marleen), o filme de Rainer Werner Fassbinder, é uma grande obra de arte por, entre outras qualidades, mostrar as diferentes nuances na escolha das personagens principais, uma cantora e um pianista. O cineasta alemão, morto em 1982, deixou alguns clássicos para o cinema do final do século XX. A filmografia de Fassbinder é vasta e possibilita-nos uma visão diferenciada do mundo. Aprendemos um pouco mais com a obra do diretor.
“Lili Marlene” é baseado na história da cantora Lale Andersen. A atriz Hanna Schygulla interpreta a cantora ariana Willie, apaixonada e correspondida pelo pianista judeu Robert, papel de Giancarlo Giannini. Em plena guerra, em 1939, ela grava a canção “Lili Marleen” e a música torna-se a preferida dos soldados alemães, também admirada pelos inimigos, do outro lado do front.
Duas pessoas de raça distintas; uma canção que atravessa todas as fronteiras. Fassbinder, com essas duas situações, traça um sutil painel do ser humano frente às possibilidades de escolha. A trajetória do sucesso da canção evidencia a ascensão e queda do nazismo. Poeticamente, a guerra dá um tempo, parando por minutos, estagnada ao som da canção. As cenas com soldados imóveis, ouvindo a canção, têm mais força que qualquer arma de fogo. Já o amor entre Willie e Robert é movimento constante, intenso; o casal é levado a escolher lados, a decidir sobre comportamentos, a optar pelo próprio futuro. Com agilidade, roteiro inteligente e atores de primeiríssima qualidade, Fassbinder deixa evidente que a Grande Guerra é mais que uma simples luta de dois lados.
Escolhas! As situações cotidianas obrigaram-nos pensar um pouco mais sobre decisões, julgamentos. Porque escolher supõe julgar. E justamente por haver infinitas motivações e nuances em determinadas ações humanas é que temos que tomar cuidado com julgamentos. E se o “evidente” criminoso estiver dizendo a verdade? Quais as reais intenções daquela decisão do governante? O juiz teria visto ou não a mão que tocou a bola? Na televisão escolheram o cantor porque é bom ou por ser bonito? Quais motivações movem a ação de relatores e ministros?

Opinamos baseando-nos em fatos. Escolhemos em função do que determinamos enquanto correto; todavia, nem tudo é o que parece e a história carrega fartos exemplos de mentiras que foram celebradas como verdade, de heróis que foram grandes bandidos e de criminosos que não passaram de vítimas das circunstâncias. Lale Andersen foi uma notável intérprete alemã em pleno nazismo. Elis Regina cantou para os militares em plena ditadura. Fassbinder mostra que Lale, através da personagem Willie, foi outra pessoa, assim como sabemos que Elis só cantou nas Olimpíadas do Exército, em 1972, porque sentiu-se pressionada.
Ponderar os fatos com a devida cautela e perceber além do aparente; posturas que só o ser humano pode adotar. “Lili Marlene” levou-me a pensar sobre isso. Não é nada demais refletir um pouco sobre essa capacidade tão humana perante tantas histórias que infestam nosso cotidiano.
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Boa semana para todos!
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Excelente. Esse filme ainda nao vi. Vou procurar.
Esse assunto sobre escolhes muito me interessa, já que sempre levei a minha vida analisando sobre as escolhas que fiz e irei fazer no futuro.
Esse é um dos motivos que me irritam quando alguém fala que nao havia escolha. Realmente há casos em que somos vitimas das circunstancias, mas isso é só em casos extraordinários.
No cotidiano, em nossa rotina, temos “N” escolhas e temos o privilégio de podermos refletir para escolher o melhor caminho.
Beijo.
Querido Valdo,
O Fassbinder mexeu com a cabeça da gente, balançou estruturas, preconceitos, repensou a estética e a temática cinematográficas como poucos. Sou um fã declarado desse gênio que nos deixou tão cedo.
Seu texto veio em boa hora, um texto, para variar, brilhante. Parabéns. Julgamentos, quantos e quão imprecisos, odiosos, mas o humano deles não consegue se separar. Assim como insistimos em tantas outras coisas que só nos trazem dissabores. Fassbinder, em Roleta Chinesa, toca tb nessa questão, assim como em Querelle, leva às telas as cores difusas de Jean Genet, como forma de tirar do gueto a discussão a respeito da homossexualidade. Em Berlim Alexanderplatz, 15 horas de filme resumem o romance de Alfrid Döblin de maneira excepcional, obra centrada na ascensão do nazismo. Enfim, Fassbinder é um cineasta essencial. E seus texto bro, mais ainda. Bjs e obrigado.
HUMHUMHUMHUMMMMMMMMMMMMMMM!!!!!!!!!